segunda-feira, dezembro 10, 2012

Rotineiricidades #9 - TV numa quinta-feira à noite

Lembro que a TV estava ligada. Coisa inútil. Servia apenas pra deixar o ambiente com uma luminosidade agradável, interessante, um lusco-fusco oscilante. Ela, a TV, estava no mudo, inclusive...

O único som, minimamente audível, era o roçar dos nossos corpos nos lençóis, já bastante desarrumados. Ela estava deitada de costas pra mim, a uma pequena distância... Cheguei mais perto ao ponto de tocar sua nuca (ou cupim, como nós dois, carinhosamente, chamamos o cangote alheio)...

O contato da minha barba por fazer provocou um sobressalto que a fez se contorcer na cama e aninhar-se no meu peito, o encaixe daquele pequeno corpo foi perfeito. Estremeci e continuei a roçar a nuca dela, deliciando-me deveras com aquele riso solto...

Abracei-a, forçando a brincadeira. O riso virou uma gargalhada. Ela se virou e me empurrou... Fez-se um silêncio indescritível durante o qual trocamos um profundo olhar. Ela passou os braços pelo meu pescoço num caloroso abraço. Tocou o nariz no meu. Recuou um pouco, ainda mantendo aquele olhar carregado de uma inefável cumplicidade. Cumplicidade e todos aqueles sentimentos para os quais não existem palavras, descrições, características, nada. Só sentindo mesmo pra saber...

Poderíamos ter ficado daquele jeito por um milhar de anos. Ou até mais, mas não tínhamos todo esse tempo. Eu sorri, ela também. Trocamos um leve beijo...

- Vamos dormir, minha filha?
- Vamos, pai...





sexta-feira, dezembro 07, 2012

Rosas, cerejas, magentas e madressilvas


Foram os quatro meses mais intensos daqueles 30 e poucos anos de vida de ambos. Marcaram o casamento pro início de abril, uma cerimônia simples ao ar livre, com apenas três convidados (sendo dois deles, os padrinhos), em um Parque na cidade onde viviam.

Era uma manhã idílica. A luz do sol fazia com que as cerejeiras em flor refletissem uma miríade de tons cor-de-rosa, cerejas, magentas e, principalmente, madressilvas... O vento, carregado com o odor doce de flores, misturava-se ao leve acre de terra e grama.

Ao pé de uma imensa cerejeira, o sacerdote, de costas para a árvore, celebrava a união. O casal, ajoelhado dois passos a frente, trocava imperceptíveis carícias com as mãos dadas. Os padrinhos margeavam o casal, sentados de pernas cruzadas no gramado, sorrindo da magia daquele momento, enquanto o último convidado assistia a tudo de pé, atrás de todos eles, com um semblante sério.

O vestido dela era simples, mas do mesmo tom dominante das pétalas que caíam suavemente por todo o Parque, o mesmo tom da gravata que ele usava. Não era possível descrever o olhar que eles trocavam enquanto o sacerdote oficiava a cerimônia. Um olhar que prendia, abraçava, um olhar que de dentro, não apenas dos olhos, mas da própria alma de ambos que, nesse momento, parecia una. E, a um sinal do sacerdote, ambos trocaram as alianças e votos, sem mover em nada aquele olhar inebriante.

Foi como se a força do olhar os aproximasse cada vez mais até que, de olhos fechados, tocaram os lábios e um beijo que poderia ter durado toda uma eternidade...

... Mas que acabou interrompido assim que o convidado que estava em pé desmaiou.





segunda-feira, outubro 22, 2012

Olhares urbanos

Sob um sol escaldante eles trocaram um demorado olhar.

Poderiam ter trocado mais... Trocado algumas palavras ou um sorriso. O número de telefone, algumas mensagens engraçadas, e mais risos. Palavras, momentos, beijos, carícias. Poderiam trocar um dia, uma semana, um ano, uma vida, as suas vidas, uma pela outra. Poderiam ter trocado alianças e seus status no facebook. Trocado todos os sentimentos do mundo. Trocado tudo para ter um ao outro...

Mas, naquele sol escaldante, trocaram apenas um demorado olhar...

Foto: MjYj / Flickr

terça-feira, outubro 16, 2012

Rotineiricidades #8 - Efeito borboleta

Trânsito caótico. Manhã quente. Buzinas. Carros, ônibus, motos, pedestres. Stress. Stress. Stress...

Preso, em meio a tudo isso, dentro do ônibus, tento me distrair e evitar as pessoas se acotovelando. Olho pros lados e não vejo um só rosto amigável ou receptivo, nos carros lá fora, a mesma coisa, fecho os olhos e respiro fundo, tentando me abstrair. Nada.

Abro os olhos e é quando, do nada, surge aquela borboleta, de asas negras e azuis, voando em torno de um motociclista. Ela passa por ele e chega perto da janela que eu estava, como que pra me desejar um bom dia. Devolvo a gentileza com um sorriso e fico a observar seu voo. Ela vai e vem, num padrão totalmente aleatório (pelo menos pra mim), rodeando motos, passando por cima dos carros, retrovisores, janelas, um eventual galho de árvore. Subindo e descendo, indo e vindo, voando, voando, voando, aqui e ali. 

Aquele balé aéreo faz com que o tempo pare por alguns instantes. Deleito-me deveras com a cena. Até que algumas pessoas (do ônibus) começam a estranhar aquele meu sorriso bobo, parecido com um soluço, enquanto todo aquele caos segue em frente e, eu, com toda a calma do mundo, sorrindo. Percebo olhares curiosos, mas não consigo tirar os olhos daquele borrão azul e negro.

E foi assim que uma singela beleza alada provou a veracidade do efeito borboleta da teoria do caos: o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um terremoto na China, ou um sorriso do outro lado da rua...

Carpe diem. Porque a vida é curta.




quarta-feira, setembro 26, 2012

Rotineiricidades #7 - Cantadas no ônibus

Rotina: substantivo feminino, do francês routine, de route, caminho.
1. Caminho já trilhado ou sabido; 2. Prática constante, em geral (costume); 3. Hábito de fazer uma coisa sempre do mesmo modo (rotineira); 4. Índole conservadora ou oposta ao progresso (conservadorismo); 5. Sequência de instruções ou de etapas na realização de uma tarefa ou atividade.

Um pequena parte da minha rotina é sair de um trabalho e correr direto pra outro, lá pelas duas da tarde. É um trajeto rápido, 15 a 20 minutos, dependendo do trânsito e da rota, é tão rápido (e quente) que eu nem chego a abrir um livro pra ler, fico geralmente ouvindo música ou remoendo coisas pra postar aqui no blog...

Outro dia fazia esse percurso num ônibus vazio vazio, umas dez pessoas bem espalhadas, quando uma garota entrou, passou a roleta e sentou do meu lado. Dei-lhe o mais rápido dos olhares e voltei ao celular pra responder a um sms.

Foi quando percebi que ela tava lendo minhas mensagens.
(Parêntesis)
Esse é um vício geral e, creio eu, incontrolável: ler o sms alheio no ônibus. Não sei em outros lugares, mas aqui em Belém isso acontece muito. Uma amiga me disse que, quando percebe que estão lendo, escreve algo tipo "depois de retorno, tem um filho-da-puta lendo minhas mensagens".
(Fim do parêntesis)
Ao perceber que ela estava lendo, comecei a trocar umas mensagens muito, muito, mas muito sacanas com uma amiga: Bolinho Gerusa. Pura putaria. Escrevia e olhava de esguelha sutilmente. Ela continuava lendo. Até que, em certo ponto, ela tocou no meu braço e disse:

- Oi, tudo bem? Você tem uma caneta pra me emprestar? - Só então pude reparar bem no rosto dela, tinha a pele clara e os olhos pretos, cabelos castanho escuros e aparentava algo em torno de 25 anos. Bonita, mas com um rosto sério.

- Ah tenho sim, só um instante... - Coloquei o celular no bolso e comecei a revirar a mochila atrás de uma caneta, achei e passei pra ela.

- Ah! Obrigada - Daí ela revirou umas apostilas, tirou um papel e se virou de novo pra mim

- Agora você pode me dar o seu número?

o_O!

Quedei-me pasmo e, ao mesmo tempo, perplexo... Simplesmente não soube o que fazer, a voz ficou presa na garganta enquanto ela me encarava com os finos lábios a formarem um sorriso cínico. Como já estava quase no meu ponto, dei o número aos atropelos, peguei a caneta e desci.



segunda-feira, setembro 10, 2012

Incesto

Há horas eu a estava observando. Sentado em um banco junto ao balcão, estava (quase) completamente bêbado. Ela devia ter algo em torno de 1,65 de altura, com cabelos loiros e cacheados que esvoaçavam de uma forma deveras sensual quando inclinava a cabeça sorrindo. Na penumbra do lugar onde estávamos não pude ter certeza, mas podia jurar que ela tinha olhos claros, verdes, pra ser mais preciso. Dir-se-ia que ela era gordinha, mas isso não importava, a silhueta levemente acima do padrão midiático de curvas e formas só a deixava mais atraente pra mim. Todos os seus movimentos me cativavam, tudo nela me excitava, boca, olhos, cabelo, seios, pernas, tudo. Não conseguia ver nenhuma outra pessoa, só ela. Só ela.

Entre uma cerveja e outra, perdi a noção do tempo que fiquei a observar aquela beldade. Até que, em dado momento, nosso olhares se cruzaram. Ela me olhou e sorriu, um riso tão sensual quanto infantil. Um arco de beleza e sensualidade magistralmente pintado num rosto claro e límpido, tal e qual uma estival alvorada em uma praia deserta.

Pois bem. De longe, ela me olhou, sorriu, disse algo às pessoas que estavam em volta e veio em minha direção. Quedei-me pasmo vendo seu elegante caminhar e fui assaltado por um nervosismo que me deixou sem voz no momento em que ela estacou em minha frente. Com as mão na cintura e uma postura autoritária ela me deitou um olhar cínico e disse:

- Vem mano, a mamãe disse que não era pra nos demorarmos...

Droga! Era por isso que ela me parecia tão familiar.



terça-feira, setembro 04, 2012

A Casa na Praia

Pelo que me disseram, ninguém sabe quem construiu aquela casa.

Ela tinha um aspecto diferente, uma arquitetura intrigante, um pé direito muito alto e colunas rebuscadas, trabalhadas com o estilo das casas antigas, mas também tinha paredes com ângulos arrojados e águas de telhado com inclinações que não condiziam com aquele estilo, era antiga e moderna e, acima de tudo, velha.

Pois bem, a casa em si não é a questão.

Era uma casa abandonada e diziam, por toda a praia, que era habitada por demônios e fantasmas. Os moradores mais antigos da praia diziam que, em um dia de chuva, um anjo dos novos deuses passou a visitá-la. A princípio poucas vezes, mas com o passar do tempo com mais frequência. Depois disso, em pouco tempo, todos demônios e fantasmas se enfraqueceram ou foram embora.

Todos menos um.

Esse último habitante, um fantasma, foi, finalmente, deposto pelo anjo, que passou a habitar sozinho aquela estranha casa. Mas não à toa a casa era abandonada: era uma casa difícil de ser habitada, era como se ela reagisse aos habitantes pacíficos, como se não quisesse a paz. A casa lutou e, por fim, transformou também o anjo em um fantasma.


segunda-feira, setembro 03, 2012

Lágrimas e chuva

Durante muito tempo, alimentei uma lágrima
Que me fugiu em um dia de tristeza, enquanto chovia
Mas, em um dia de sol, ela voltou a mim no riso daquelas crianças

terça-feira, julho 31, 2012

Rotineiricidades #6 - Andando de ônibus

"Rotineiricade" é um termo que, do fundo do coração, penso ter sido criado por mim. Criei-o com o intuito de descrever, sob uma holística diferenciada, certos eventos do cotidiano. Surgiu de algumas variações e junções das palavras "rotina" e "cidade" enquanto escrevia, um dia desses, em um certo bar na Rua do Horto. Pois bem, acho que isso não interessa, vamos à rotineiricidade da vez...

Depois da última mudança (de residência), andar de ônibus passou a ser um pequeno deleite, pelo fato de morar perto do final da linha do ônibus, ele sempre conseguia um bom lugar do lado da janela pra sentar e, de imediato, quedava-se naquela cruel dúvida diária: ler ou dormir. Eu sempre o ouvia dizer: "qualidade de vida pro pobre é morar perto do fim da linha do ônibus!", e ele aproveitava essa "qualidade de vida" entretendo-se entre essas duas paixões, a onírica e a literária. Acho que se pudesse ler enquanto dorme, considerar-se-ia conquistando a magna bem-aventurança!

Ontem, por exemplo, chegou a abrir o livro, mas ao primeiro parágrafo as pestanas pesaram e ele dormiu por todo o trajeto até o trabalho. Hoje, não obstante ao fato de ter dormido apenas 3 horas, estava sem sono. Sentou-se, leu dois capítulos de "On the road", do Jack Kerouac e ficou a remoê-los mentalmente, pra assimilar melhor a intensa narrativa. Das viagens de Sal Paradise, ele traçou um paralelo com as suas próprias viagens, muito embora nunca tenha feito nada parecido. Considerava como "viagens" as suas idas e vindas e viradas pessoais. Em apenas um ano, tinha tido tantas reviravoltas que pensou consigo mesmo, relembrando "Vinte e Nove"... "Quantas mortes ainda terei pela frente até que os vinte e nove anjos me apareçam?"

Como já havia abandonado a leitura e a cabeça arrastava-o em um turbilhão de lembranças, mesmo querendo, não conseguiu dormir. Encostou a cabeça na janela e começou a observar as pessoas. Em verdade, observar sem observar, via-os e, no mesmo instante, já não poderia dizer se olhara um homem ou uma mulher ou uma criança ou um dinossauro. E, pensando em dinossauros, veio-lhe à mente a última vez em que falara com o seu pequeno Yoshi...

(parentêsis)
...
(fim do parêntesis)

A conversa começou como todas as outras, o Yoshi dizia um "Oi pai!", bem rápido, parecendo alegre mas repleto de uma tristeza represada, no que ele respondia dizendo "Oi Yoshi!", no mesmo tom fingidamente alegre e calmo. Conversariam sobre qualquer coisa, a chuva, a praça e os pombinhos que fugiam assustados, uma professora da escola, um brinquedo, um desenho ou um filme legal, ambos segurando os próprios sentimentos. (Porque fazer isso?!?!). Em dado momento, quando um ou outro não mais pudesse se conter a "garotinha cega" entraria na conversa, ele sempre se preocupava mais com a saudade dela do que a sua própria: "Pai, a Toph quer falar contigo...". E daí em diante ele passaria alguns momentos voando e saboreando aquela doce voz que só repetia "Oi pai!", mas de forma bem diferente do outro, uma forma verdadeiramente alegre e apaixonada, não que o outro não o fosse! Ao contrário... Éramos (e ainda somos), os três, extremamente apaixonados, creio apenas que ele entendia a distância, ela não...

O ônibus parou na Praça Brasil, Senador Lemos com D. Pedro II, e só então ele percebeu que uma torrente de lágrimas descia-lhe pelo rosto, algumas pessoas passavam pela roleta e olhavam curiosas, outras não percebiam, uma senhora de idade, que estava na rua, deitou-lhe um olhar com tal benevolência que parecia ter lido todas as angústias que a trilha de lágrimas do seu rosto diziam.

Enxugou as lágrimas, recompôs-se, sem muito sucesso, desceu e entrou no trabalho. Estava exatamente uma hora atrasado.


sexta-feira, junho 08, 2012

Batalhas interiores - Palgon

Ele chegou ao hades em meio aquele lusco-fusco de fim de tarde. Fazia um calor agradável.

Ao escurecer, as nuvens estavam espessas, tão espessas que ele pode sentar-se, de pernas cruzadas, sobre um amontoado delas, eram stratocumulus, as melhores pra os que são dados à meditação em nuvens. Ele era um desses atípicos. A noite veio e trouxe junto um frio glacial. Seu corpo desnudo era constantemente açoitado por rajadas de um vento gelado e sibilante. A lua estava de uma beleza assombrosa e ele concentrou-se nas sombras das nuvens projetadas na superfície, as mais diversas formas moviam-se pelo solo, mesclando-se, desmanchando-se, inconstantes sempre, como os seus pensamentos volitantes. Geômetras, fractais, espirais, todo tipo de forma, milhares de mundos e possibilidades iam e vinham, tal e qual e tantos quantos as sombras das nuvens.

E assim as horas se foram.


De repente, uma dificuldade em concentrar-se no exercício causou-lhe um desconforto, a princípio inóxio, mas que começou a evoluir quando os faunos anunciaram a chegada da hora do búfalo. Por essa hora a lua já havia abandonado o seu manto dourado e (re)vestia-se de um branco marmóreo o que tornava o contraste entre as sombras e a claridade mais acentuado, quase vivo. Quando as nuvem e, consequentemente, suas sombras cobriram o firmamento o desconforto mostrou sua verdadeira forma, saiu de seu corpo e sentou-se defronte. Ao sentar-se, de igual forma (pernas cruzadas e postura ereta), sob uma lacuna de luminosidade deixada por uma brecha nas nuvens, pode vê-lo nitidamente: era alto, muito alto, magro e branco, com olhos e boca finos, cabelos esvoaçantes e seu corpo refletia a etérea luz do luar.

Ambos permaneceram de cabeça baixa, não se miravam diretamente.Quando outro fauno soou o sinal referente à hora do tigre, o demônio olhou-o de forma solene e apresentou-se:
- Os vivos chamam-me de Palgon... E vós, como sois chamado por eles?
- Vieste de minhas entranhas, sei que estiveste um bom tempo a andar comigo, não preciso dizer-te meu nome. Sabe-o muito bem.

Fez-se novamente silêncio enquanto eles se encaravam e, cada vez mais, a angústia crescia-lhe no estômago e subia-lhe. Peito, garganta, boca e olhos. Tremia febrilmente sem saber se essa angústia, que agora lhe tomava conta, emanava de Palgon ou de si próprio. Seus olhos, até então apenas marejados, irromperam em lágrimas e um gritou que acordaria até o próprio deus, brotou-lhe da garganta. Sentiu-se ligeiramente melhor, parece que agora tinha armas contra aquela batalha silenciosa e, não obstante ao fato de estar sendo derrotado, era bem melhor lutar que entregar-se passivamente. Entregar-se-ia ao demônio da solidão mas não sem luta.

As lágrimas continuaram a brotar, vindas do seu próprio desespero, alimentadas por ele, os gritos ficaram mais fracos e dados a intervalos cada vez maiores de tempo. A nuvem, que servia-lhes de tatame e, ao mesmo tempo, campo de batalha, dissolvia-se ao entrar em contato das lágrimas e isso o deixou apavorado. Em meio a tudo isso, Palgon mantinha um sorriso no rosto e arredava um mecha de cabelo da frente dos olhos.

Já não podia mais encarar Palgon de frente. As dores abdominais fizeram com que se curvasse, chegando ao ponto de tocar a testa nas pernas cruzadas. E chorava, chorava como uma criança perdida, uma cria abandonada, um órfão. As lágrimas continuavam a dissolver a nuvem e ele não conseguia se concentrar para manter a nuvem sólida o bastante para permanecer em segurança. Sabia que não resistiria à queda. Palgon, por outro lado, parecia que flutuava a milímetros de distância da nuvem e, mesmo que caísse, provavelmente não se machucaria.

Toda a luta parecia em vão, malhava em ferro frio. Estava cada vez mais fraco e esgotado. Passava da metade da hora do tigre e ele sabia que a luta findaria junto com essa hora. Temia o seu desfecho. Quem venceria? Palgon era a escolha óbvia, estava mais forte e aparentemente preparou-se para tal embate.

Ele passou a apenas se defender, mesmo sem saber como. Quanto mais era fustigado pelas investidas imóveis e silenciosas de Palgon, mais tremia. O vento, as lágrimas e Palgon, tudo fazia com que sua pele gelasse. Tremia pra se aquecer, abandonou a postura meditativa e pôs-se em posição fetal. Assim esperou o fim, o derradeiro ataque do demônio da solidão.

Nesse momento, no fim da hora do tigre, ao abandonar por completo as esperanças, sentiu o frio amainar. Continuava vivo. Piscou várias vezes. Não acreditava na cálida sensação que agora lhe nascia. Desvencilhou-se do nó que dera em seu próprio corpo. Sentiu o calor do sol, dos seus primeiros raios. Levantou-se ainda em tempo de ver Palgon abandonar o sorriso e evaporar junto com a luz do dia.

E amanheceu... Sempre amanhece.


segunda-feira, maio 21, 2012

Rotineiricidades #5 - Escrevendo no almoço

O cansaço se lhe fez insuportável e, nesse estado, aquele banho se lhe afigurou tal e qual uma satisfação sexual, parecia que derretia, que gozava, ejaculando-se e escorrendo-se junto com a água fria que caía abundantemente. Quando voltou à cama encontrou-a em um estado de semiconsciência, dormitando como uma criança exausta. Deitou-se bem devagar para não acordá-la. Abraçou-a por trás, encaixando-se perfeitamente no seu corpo esguio. Ela deu mostrar de querer acordar e ele prendeu a respiração sem fazer movimento algum. Esperou um pouco e respirou bem fundo, depois beijou-a na nuca e sussurrou-lhe algo que só foi ouvido nos seus sonhos.



sábado, maio 19, 2012

Um grande berço


Por essa época eu era dado à meditação e, como dispunha de bastante tempo livre, dispendia incontáveis horas nesse deleite. Sentado, costas eretas, pernas cruzadas. Sentava na areia, bem perto da linha d'água da Praia do Atalaia, sempre virado de frente pro sul. Gostava de ter a maré às costas, era como se soubesse que nada me distrairia daquele lado, apenas o marulho com aquele ritmo cadenciado. Dessa forma eu tentava me abstrair e me largar às meditações.

Pois bem! Estava eu a meditar naquela manhã simplesmente linda. Céu de Brigadeiro. O vento, sempre forte, batia-me à esquerda e os raios do sol vinham da mesma direção. A praia estava praticamente deserta, fora de temporada. Já estava quase mergulhado naquele mundo particular, dentro da minha cabeça quando, meio que do nada, o barulho de um casal de crianças me trouxe de volta. Distavam cerca cem metros de mim e caminhavam com a alegria de crianças que, ao invés de ir à aula, foram "obrigadas" a pegar uma praia. Daí em diante, pus-me a observá-los e vi uma cena que, ainda hoje, lembro com uma clareza absurda.


As crianças se pareciam bastante, o garoto parecia ter dois ou três anos a mais que a garota. Brincavam distraidamente num pequeno lago, desses que se formam quando a maré começa a secar. Fiquei a observar o ir e vir deles durante um bom tempo, corriam de um lado a outro, brincavam em diversos lagos, corriam até o mar e voltavam e, nesse ponto, pude vê-los mais de perto. Olharam-me de relance, em momentos distintos: o garoto sorria com os lábios, mas deixava passar uma tristeza muito grande no olhar; ela era quase o oposto, se é que posso assim dizer, mantinha os lábios numa expressão retilínea, sem demonstrar emoção alguma, mas emanava um calor do olhar que parecia querer fazer frente ao próprio sol.

Não sei quanto tempo ficaram nesse ir e vir até que se deu o ocorrido:
Começaram aquela brincadeira de girar segurando um ao outro pelas mãos. Nunca brinquei disso, sempre achei deveras perigoso mas, pelo jeito, eles gostavam. E muito. Giravam e giravam, estavam cada vez mais rápido, giravam, gritavam e riam, parecia (de longe) muito divertido. Daí começaram a ceder e diminuir o ritmo, até parar. Sentaram. Deitaram e riram alto, muito alto. Depois recomeçaram...
Dessa vez foi diferente. Quando estavam quase parando, ele soltou as mãos dela. Não consigo imaginar o que o tenha impelido a fazê-lo, mas ele fez: soltou-a. Ou melhor, soltou-se dela. Ambos caíram violentamente, em direções opostas. Ela caiu na água e bateu as costas em uma pedra. Ele caiu no seco, ralou-se no chão e os olhos encheram-se de areia.
Ambos choravam, cada um no seu lado, cada um com seus machucados.
Ela pôs-se de pé primeiro, mas o machucado das costas a impediu de andar por alguns instantes. Ela começou a conter o choro e ficou olhando o garoto que ainda se mantinha no chão, tanto por conta das escoriações quanto pelo fato de não poder abrir os olhos. Com a voz entrecortada pelo choro, ele pedia ajuda, não conseguia ver nada, queria que ela o ajudasse a levantar e lavar os olhos. Ele berrava pedidos de desculpa, mas eles chegavam ao semblante da garota sem produzir efeito algum, tal qual a minúscula marola que se chocava contra as pedras que a feriram.
Ela, por outro lado, já chorando baixinho, parecia estar tentando entender o porquê daquilo tudo. Não havia motivo para soltá-la, já estavam diminuindo, parariam em breve e, caso ele quisesse parar, bastava pedir e ambos parariam de imediato, sem precisar daquilo.
Pode ter sido imaginação minha, mas pude sentir o cheiro da tensão e da amargura deles sendo trazido pelo vento, junto com o salito.
Por um tempo ela só observou, em silêncio, contendo as lágrimas. Mas, não obstante à raiva latente, aproximou-se dele e estacou, fazendo sombra, de tal modo que o rosto dele ficasse abrigado do sol na sua sombra. De imediato ele se acalmou e também parou de chorar, virou-se e sentou, com as pernas cruzadas, sabendo que ela estava bem à sua frente, mas com os olhos ainda fechados, sem poder vê-la.
E ficaram assim. Parados, como jogadores de xadrez esperando o movimento alheio. Respirando fundo, mais sentindo do que vendo um ao outro.
Nesse momento, uma onda quebrou e me desviou da cena. Virei o rosto muito rápido, sem perceber que a luz do sol viria direto nos meus olhos. Minha visão turvou por alguns instantes. Estava prestes a poder ver de novo quando ouvi um barulho vindo de trás, virei e vi uma gaivota voando carregando um peixe em forma de guitarra na boca. Quando me voltei à cena, os pais já estavam conduzindo as crianças pra casa. O garoto caminhava com dificuldade abraçado à cintura da mãe que o consolava. A garota parecia bem relaxada no colo do pai, com os braços em torno do pescoço dele, abraçando-o. E assim eles se foram, fazendo o caminho de volta afastados.
Até hoje eu imagino o que aconteceria se Édipo e Electra continuassem lá, sem a intervenção de ninguém, sozinhos com seus sentimentos de criança.



Fotos: Pedro Filho e Maurício de Abreu (Panoramio)


sexta-feira, maio 11, 2012

Hades

Tenho um carinho todo especial pelo "Hades", a casa que atualmente moro... Sempre ando com um caderninho que é o meu "blog offline", tenho alguns textos nele, contos, crônicas, poesia e alguns desenhos... Mas ainda não descobri o porquê de não publicar nada que tá escrito lá...

Este piccolo poema é a primeira construção que deixa esse caderno... É, como disse, um texto cheio de um carinho todo especial pela minha atual morada... Foi escrito dia 18 de fevereiro. Já faz um tempinho!

***

Moro onde os mortos habitam
Rio-me de todos os demônios
Basta que eu simplesmente queira
Para que todos fechem-se em si mesmos

***


terça-feira, maio 08, 2012

Rotineiricidades #4 - O ritmo da chuva

O relógio marcava 19h19.

Depois de uma noite complicada quase sem dormir e um dia extremamente corrido no trabalho, o cansaço e a fadiga começam a tomar conta do corpo. O clima frio da redação faz com que o sono pareça um carinhoso toque de mãe, ele começa a dar mostras de que vai dormir ali mesmo, sentado. Ele então pega um livro da mochila, "Ereções, ejaculações e exibicionismos - Parte 1: Crônica de um amor louco", de Charles Bukowski, entretanto, a falta de concentração advinda do sono faz com que só consiga ler dois contos: "3 mulheres" e "10 punhetas".

Ele fecha o livro, deixa sobre a mesa e caminha calma e distraidamente por toda a extensão da redação. A pausa entre o fechamento de um caderno e o início de outro dá-lhe essa momentânea folga. Em verdade, andar tem uma dupla finalidade, afastar o sono e manter-se aquecido. Foi à copa na esperança de encontrar um café quente, pura ilusão.

A sala de reuniões chamou-lhe atenção, não percebera, até agora, que chovia torrencialmente. O barulho da chuva que entrava pela única janela que ficava aberta era isolado pelas paredes paralelas de gesso da sala de reuniões. Acendeu as luzes e caminhou até a janela. O barulho teve um efeito quase que hipnótico sobre ele, esqueceu o sono, o cansaço e andou até ficar encostado à janela. Os pingos da chuva que molhavam o seu rosto eram como agulhas de gelo e, de imediato, ele correu a janela de vidro, fechando-a. O silêncio foi perturbador, abriu-a de novo e ficou a observar a chuva, não obstante ao frio deveras incômodo dos respingos. Acabou por entrar em um estado de contemplação sem par. Horas se passaram dentro daqueles poucos minutos e, por fim, saciado daquele estranho fetiche, fechou a janela, apagou as luzes, voltou à redação e pôs-se a escrever...

O relógio, agora, marcava 19h36.



sexta-feira, abril 13, 2012

O Menino e o Velho

Ainda hoje, 20 anos depois, às vezes me pego a lembrar desse amigo que tive, mesmo que por pouco tempo, quando criança... É uma lembrança tão boa e estranha quanto impossível e inexplicável. Na época, quando eu contava esse caso, ninguém acreditava, diziam que era mentira, coisa de criança, uns mais alterados diziam que era visagem, outros diziam que era esquizofrenia, disseram de tudo. Não sei. Mas sei que foi algo mais ou menos assim...

Sempre viajávamos nas férias de julho, meus pais, meu irmão dois anos mais novo, minha irmã dois anos mais velha e eu. Eu adorava essas férias na praia, adorava mesmo. Nesse mês de julho, porém, não lembro o porquê, nós não viajamos.

Acabáramos de nos mudar pro bairro de Canudos, pra uma rua chamada - lembro-me muito bem - "Segunda de Queluz" (nunca conheci a "Primeira" e nem soube se havia uma "Terceira de Queluz"). Pois bem, meu irmão e eu ainda éramos estranhos a todos na rua, brincávamos sempre juntos num pequeno pátio que era separado da calçada por um baixo muro amarelo.

Todos os dias olhávamos os outros garotos a brincar na rua. Todos menos um. Havia uma casa, no outro lado da rua, há umas 6 casa de distância, de madeira e bem velha, com mato alto na frente, quase na altura da janela. Janela essa em que sempre estava aberta e ocupada por esse garoto. Debruçado e sempre com um olhar triste e vago, meio que perdido em lembranças e pensamentos. Era uma figura que transparecia uma curiosidade natural. Aparentava ter a minha idade: 7 anos.

Logo nos enturmamos e saímos do limite do muro amarelo. E já as mais diversas brincadeiras fluíam como se todos da rua se conhecessem desde sempre. Travinha, paredão, pira-maromba, taco, polícia-e-ladrão e por aí vai. E aquele garoto continuava lá, sempre debruçado na janela. Sempre pensativo.

Certa vez, três dos garotos não apareceram (todos irmãos) e, como eram sempre eles que puxavam as brincadeiras, a maioria de nós voltou pra casa. Meu irmão entrou em casa e foi assistir à "Sessão da tarde", acho que estava a passar "A Lagoa Azul" e eu, como já havia assistido o filme, fiquei sentado no muro amarelo. Uma rápida olhada e um fato me chamou a atenção: o garoto misterioso não estava na janela. Pulei do muro e comecei a andar, meio que como quem não quer nada, na direção da casa dele, encontrei-o sentado, sobre um amontoado de tábuas no chagão que levava ao quintal. Olhamo-nos rapidamente e ele sorriu, achei deveras estranho, parei por instantes e sorri de volta. Continuei até chegar à esquina da Roso Danin. Na volta ele estava na posição habitual, à janela.

- Ei! Como te chamas?
- Magno... eu moro ali naquela casa de muro amarelo.
- Meu nome é Mateus, eu moro aqui...
- É, eu sei, sempre te vejo aí na janela...

Ele abriu a porta e sentou na soleira, eu me aproximei e começamos a conversar, ficamos lá até o início da noite. Foi uma conversa bem legal e, apesar ter a mesma idade que eu, ele aparentava ter mais, falava como alguém que conhecia bem as coisas. Ele, de fato, conhecia muitas coisas, morava só com o avô e, pelo jeito, mudavam bastante de casa. Ele me contou que saíra de Manaus bem pequeno, moraram no Maranhão por uns tempos e, em Belém, Canudos já era o quarto bairro diferente, ele e o avô mudavam muito.

Conversávamos sobre muitas coisas, mas o que me chamava a atenção eram, principalmente, principalmente, principalmente mesmo, os dinossauros. Ah, os dinossauros!! Não sei como (e nem onde) ele aprendeu tanto sobre dinossauros, mas ele sabia tudo sobre dinossauros. Tudo mesmo. Ele me explicou os períodos em que viviam, o tamanho, se eram carnívoros ou herbívoros, hábitos, essas coisas...
De todos que ele me "apresentou", o que eu mais gostava era o Espinossauro que, segundo Mateus, era muito mais "casca-grossa" que o temido T-Rex, mas que pertencia a um período diferente e, por isso, nunca se confrontaram. Ele dizia que toda essa fama e glória do T-Rex deveria ser dada aos espinossauros. Eu concordava. Em verdade, ainda concordo.

Daí em diante, minhas tardes ficavam fracionadas entre as brincadeiras com os garotos da rua e as conversas com Mateus. Apesar das minhas constantes insistências, ele jamais se juntava aos demais nas brincadeiras, falava que não podia em função de uma osteomielite que teve na perna direita. Depois de uns dias parei de insitir. Nós acabamos por criar uma amizade muito forte, éramos crianças e, nessa época, as amizades vem de forma muito rápida, intensa e verdadeira. Mas, infelizmente, os dias passam.

E os dias passaram e o termo das férias se aproximava.

Lembro de ter visto Mateus sair com o avô, num fim de tarde bem monótono, na última sexta-feira daquele mês de julho, dia 27. Ele já tinha me dito que visitar iam uns tios no interior e que voltariam apenas na terça, dia 31, véspera do primeiro dia de aula. Não obstante à ausência de Mateus, esse último fim de semana parece ter sido o mais divertido. Percebi que brincara muito pouco nos últimos dias e, ao que parece, todos queriam aproveitar ao máximo as tardes de liberdade antes da volta à escola. Comentei com os demais que seria bem legal se o Mateus se juntasse a nós, mas nenhum deles o conhecia.

Aquela terça-feira, 31 de julho, último dia do mês, chegou como um balde de água fria. Acordei com barulho de chuva no telhado. Perto do meio-dia a chuva passou, mas daí em diante o dia ficou deveras modorrento, preferi tomar aquele cenário climático como  uma manifestação de desgosto pelo fim das férias. Lá pelo meio da tarde me senti um pouco estranho e fui sentar no muro de casa, lá fiquei por um bom tempo a remoer aquela sensação (hoje sinto-a com frequência, é uma mescla de vazio, solidão, tristeza e afins). Pois bem, durante esse tempo fiquei a esperar a volta de Mateus e seu avô. A noite chegou e ninguém apareceu. Lembro que minha mãe estacou do meu lado e perguntou o porquê da cara triste. Respondi que estava daquele jeito porque meu amigo não tinha voltado. Disse onde ele morava e ela retrucou: "achei que não morasse ninguém naquela casa, pensei que o dono a tivesse abandonado..."

O fato é que Mateus e o avô não apareceram nesse dia, nem no dia seguinte, nem na semana seguinte. Fiquei abatido durante vários dias. E o que me deixava mais irritado é que ninguém conhecia ele, parece que  fui o único garoto da rua a perceber que existia um igual naquela casa e, consequentemente, o único a dar pela falta dele.

Um dia cheguei da escola e vi uma ambulância e várias pessoas na frente da casa do Mateus e, ao me aproximar, vi um homem muito idoso numa maca. Tentei ver o interior da casa e localizar o Mateus, mas foi em vão. Lembro de ter visto seu avô apenas uma vez, eles estavam de costas, de mãos dadas e indo embora mas, mesmo assim, tinha certeza absoluta de que aquele senhor era o avô dele. Não tinha como não ser! O que me deixava preocupado é não achar o Mateus. Onde ele estaria agora? Com quem ficaria enquanto o avô estivesse no hospital? Será que era algo muito sério??

Forcei a passagem e fui contido perto da maca, mas ainda pude ver o rosto do homem: parecia-me a pessoa mais velha do mundo, muito magro e enrugado, o rosto pálido e debilitado lembrava, de longe, Mateus. A porta fechou e a ambulância seguiu. Fiquei inquieto com aquilo durante os dias que se seguiram. Queria saber onde estava meu amigo e como estava o avô dele.

Juro que não acreditei quando, dias depois, ouvi aquela história (que chegou até a sair no jornal):

- Idoso morre depois de fugir de Hospital -

Pelo que eu soube, esse homem tinha 72 anos e estava internado em estado de coma após de sofrer um AVC. Ele recobrou a consciência e ficou estável depois de um tempo, algo em torno de 25 dias e, tão logo se viu sem vigilância, fugiu do hospital! Segundo consta, depois da fuga, ele andou durante algumas horas até encontrar essa casa abandonada. Entrou e lá ficou durante um tempo até sofrer outro AVC. Um vizinho ouviu o barulho da queda e foi averiguar, viu o corpo e acionou a emergência mas, quando o socorro chegou, ele já estava morto.

Nos dias que se seguiram, minha rotina quase voltou ao normal, exceto por um aperto no peito, oriundo da preocupação com meu amigo... Por esses dias, um casal chegou àquela velha casa (em verdade eram irmãos). Marcos e Luana eram filhos do proprietário que, por conta dos problemas de saúde, ficou aos cuidados de Marcos, o mais velho.

Eles conversaram com algumas pessoas da rua sobre o imóvel, seu estado e tudo mais, ao que tudo indica iriam vendê-lo. Simpatizei de imediato com eles, tanto que ficamos algum tempo conversando. Quando perguntei sobre Mateus, o neto daquele senhor, ambos ficaram em silêncio, depois se entreolharam estranhamente e disseram, quase em uníssono: "Papai não tinha netos... Somos os únicos filhos dele".

"Como assim? Claro que tinha!! Onde 'tá o Mateus?"

Eles se olharam de novo, de forma mais estranha ainda e disseram... "Não, ele não tinha nenhum neto e... Mateus... Mateus era o nome do papai..."




segunda-feira, abril 02, 2012

Qual o gosto do jambo?



Outro dia, há mais ou menos uma semana atrás, em um churrasco na casa de um amigo, arrisquei uma subida em um alto muro só pra "subtrair" um jambo da árvore do vizinho dele. Anteontem pela manhã, quando o ônibus parou no semáforo da Pedro Alvares Cabral com a Tavares Bastos, olhei de relance pro lado e vi o chão tomado daquela indescritível tonalidade, situada entre o carmim e o magenta, que nós todos conhecemos como "cor de jambo": a calçada estava tomada por frutos maduros. Hoje, quando o ônibus passou pelo Ver-o-Peso, foi como se eu estivesse amassando um jambo com as mãos, tal era o cheiro que exalava da "seção" de frutas do Mercado, repleto de jambos e mais jambos em cestas e mais cestas. À noite o chefe da redação abre uma sacola, tira um jambo e pergunta a alguém: "estão lavados?".

Ou seja, é só chegar o tempo de jambo, que ele se torna constante no dia-a-dia do paraense! Que o jambo é rico em ferro, proteínas e sei-lá-mais-o-quê todo mundo deve sabe, não estou aqui pra falar disso, quem quiser saber mais é só acessar a página da fruta na Wikipédia.

Não preciso dizer que adoro jambo. Creio que seja a fruta que eu mais gosto e também a que eu mais comi em toda a vida.

Quando crianças, meu irmão e eu sempre íamos com meu pai pro trabalho dele. Era numa sede campestre gigantesca do grupo Yamada, na Augusto Montenegro. "Três Corações". O lugar era cheio de campos de futebol, lagos artificiais, piscinas, mato e árvores de todo tipo. Logo na entrada, tínhamos um caminho enorme, ladeado de jambeiros, passávamos boa parte do nosso tempo por lá, em cima das árvores, apanhando e comendo jambos, dentre outras frutas.

Tive ótimos momentos com meu irmão nessa época. Horas e mais horas correndo, brincando, subindo em árvores, jogando bola sozinhos em campos de futebol enormes, nadando, "canoando", essas coisas que toda criança deveria fazer. E entre uma missão e outra, sempre tinha um jambo pra comer. Apanhávamos às dezenas, centenas! Comíamos até não aguentar mais e o restante levávamos pra casa, pra comer depois.

E, pra mim, é esse o gosto que o jambo tem: gosto de infância.

Gosto de nuvem... e de infância.

terça-feira, março 20, 2012

Renato Manfredini Jr - Casa velha, em ruínas...

"Zapeando" pela Wikipédia, deparei-me com a biografia do Renato Russo e a menção à uma certa redação, "Casa velha, em ruínas...", feita nos tempos de escola, quando ele ainda tinha perto de seis anos. O artigo falava que a redação estava "disponível na íntegra". Ora pois, fui atrás da dita cuja e achei o manuscrito que agora compartilho aos que, assim como eu, desconheciam-no...


Manuscrito retirado de Memorial Renato Russo (Site Oficial)

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Uma tarde em Cascais

Sempre tento dar alguma utilidade ao meus períodos de ócio, em verdade, quase nunca consigo. Hoje à tarde dedicava-me à essa infrutífera tarefa quando, sem mais nem porquê, me veio à cabeça o nome "Cascais'... Fica perto de Lisboa, Portugal. É um lugar belíssimo que, provavelmente, eu talvez nunca chegue a conhecer.

***


***

Por ruas e vielas da antiga Cascais,
No magro rosto um tímido sorriso,
Ia um moço franzino, passo indeciso,
Rumo ao mar nobre dos seus ancestrais.

Azul mar beijava as pedras do cais,
Embalava as traineiras com preciso
Balanço e enquanto, das aves, o riso,
Soava magano nos alvos areais.

Era a vila castiça! Vila formosa
Da costa do sol! Era a rubra rosa
Dos extensos jardins da egrégia Lisboa!

Inda o vejo passear na orla do mar,
Os seus olhos a sonhar....a sonhar...
E no bolso o tempo, que veloz se escoa.




Fontes:
Foto: "The Atlantic Ocean by the Guincho coast", disponível em Wikipédia/Wikimedia
Soneto: "Cascais" de Luís Santos, disponível em Luso-Poemas - Poemas, frases e mensagens

terça-feira, fevereiro 14, 2012

Anansi e a história das histórias

Hoje, não sei bem o porquê, me veio à cabeça a história de Anansi, uma lenda africana deveras interessante. A mitologia africana tem várias divisões que variam em função das regiões, tribos, grupos linguísticos, étnicos etc. Pois bem, a lenda de Anansi é parte da chamada Mitologia Ashanti (África Ocidental / Gana). Essa lenda é parte do folclore africano e se difundiu nas Américas do Norte e Central através dos escravos provenientes dessa região africana.



A lenda conta a história de como Anansi trouxe as histórias para o mundo, e é mais ou menos assim...

Há muito tempo, o mundo era um lugar triste por não existirem histórias. Foi quando Anansi, a pequena (e esperta) aranha, decidiu tecer uma teia até o céu para comprar as histórias que Nyame, Deus do Céu, guardava em seu baú de ouro. Lógico que todos no céu debocharam de Anansi, achando seu pleito um tanto quanto absurdo. Para tentar demover Anansi de seu intento, Nyame estabeleceu um preço altíssimo, Anansi deveria trazer quatro das criaturas mais terríveis do mundo: Onini, a píton; Osebo, o leopardo; Mmboro, a vespa; e Moatia, o espírito que nunca foi visto pelos homens. Nyame e todos que estavam no céu surpreenderam-se pois, não só Anansi aceitou os desafios, como também disse que traria Ianysi, sua velha mãe como "brinde".

De volta à terra, Anansi contou com a ajuda da esposa Aso para tentar capturar as quatro criaturas. Pensaram, pensaram, confabularam alguns planos e foram à caça. Onini, a grande píton, seria a primeira... Pegaram um galho que media aproximadamente o tamanho de Onini, alguns cipós e foram para o rio onde Onini costuma ser vista. Lá chegaram em uma teatral discussão sobre o tamanho do galho em comparação ao tamanho de Onini que, por vaidade, deitou-se sobre o galho e deixou-se medir. Feito isso, Anansi usou os cipós para amarrá-la bem forte no galho. A primeira das quatro criaturas já estava sob o seu domínio.


Logo após, Anansi, com uma cabaça e água em uma folha de palmeira, foi até o ninho da Mmboro, a vespa que picava como o fogo. Ao chegar, Anansi jogou a água sobre si e para o alto simulando uma chuva e, argumentando que a água estagaria as asas da Mmboro, ofereceu à ela a cabaça que trazia consigo como abrigo. Fechou-as e já estava com duas das quatro tarefas cumpridas.

Quando encontrou Osebo, o leopardo dos dentes terríveis, Anansi usou de todo o seu ardil ao propor um jogo ao leopardo. O jogo consistia em amarrar e depois desamarrar o outro, quem conseguisse fazer isso em menos tempo seria o vencedor. Esperta e astuta como era, Anansi começou o jogo e, em poucos instantes, tinha Osebo atado pelas patas à uma árvore. Três de quatro, quase no fim.


O mais difícil foi encontrar um estratagem para lograr Moatia, o espírito que nunca fora visto pelos homens. Dizia-se que tais espíritos dançavam ao redor de certas flores. Assim, Anansi esculpiu um boneco em madeira e pediu à Aso que fizesse um inhame irresistível. Anansi deixou o prato de inhame a frente do boneco de madeira, que estava atado por cipós tal e qual uma marionete, além de estar coberto de um líquido pegajoso. Quando Moatia apareceu, ficou encantado com o inhame e pediu um pouco ao boneco que, manipulado pelos cipós, fez um sinal afirmativo. Ao terminar, Moatia tentou agradecer, mas o boneco não se mexia. Irritado com aquilo, ele deu um tapa no boneco e ficou com uma das mãos presa, tentou com a outra mão e esta também ficou presa... Quando mais tentava, mais Moatia ficava grudado ao boneco. A última presa for capturada.

De posse das quatro criaturas e de sua mãe, Anansi dirigiu-se à presença de Nyame que ficou pasmo e, ao mesmo tempo, perplexo com o quase impossível sucesso de Anansi. Com as quatro criaturas presas, Nyame não teve outra alternativa senão cumprir o que prometera. Entregou a Anansi o baú de ouro que continha todas as histórias do mundo dizendo: "O pequeno Anansi, trouxe o preço que pedi por minhas histórias, de hoje em diante, e para todo o sempre, elas pertencem a ele e serão chamadas de histórias do Homem Aranha! Cantem em seu louvor!"

E essa, meus caros, é história de como todas as histórias chegaram ao conhecimento do mundo...




Fontes:
Anansi - Wikipédia, a enciclopédia livre
Anansi - Wikipedia, the free encyclopedia
Mitologia ashanti ____
Falando de Fantasia: Anansi

Imagens:
"Ananse-the-Spider" e "Ananse-and-the-Tiger" de Naomi Frances

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Eu vi um menino...


Eu vi um menino que, de tão péssimo, às vezes, fazia-se necessário amarrá-lo para sossego alheio...
Eu vi um menino brincar com um barco de papel numa poça de água da chuva...
Eu vi um menino muito inteligente, que desenhava maravilhosamente bem e começou a ler muito cedo...
Eu vi um menino que morava em uma casa com muro amarelo e passava as férias na praia...

Eu vi um menino que subia em árvores, atirava de baladeira e jogava peteca, mas era péssimo com pipas...
Eu vi um menino que escondeu mais segredos, dores e rancores do que o seu rosto podia mascarar...
Eu vi um menino que era bom em tudo que fazia, menos em acreditar em si mesmo...
Eu vi um menino chorar escondido por anos, até que pudesse chorar na frente de outrem...

Eu vi um menino que adorva a comida da mãe, principalmente a carne assada e feijão com macarrão...
Eu vi um menino que odiava os irmãos, mas odiava mais ainda ficar longe deles...
Eu vi um menino que gostava de tudo que o pai gostava, porque queria ser igual a ele...

Eu vi um menino que não se tornou arquiteto, nem enegenheiro, nem piloto, nem nada do que queria ser...
Eu vi um menino que se perdeu no meio do caminho, se perdeu tanto que não podia mais voltar...
Eu vi um menino que creceu, cresceu e morreu, mas ainda vive na minha lembrança, correndo de lá pra cá...


sexta-feira, janeiro 27, 2012

Autólogos: conversando com um homem sentado na chuva


Um sábado desses aí, lá pelas 14 h, popularmente conhecida como "duas da tarde", a nossa conhecidíssima chuva da tarde antecipou o seu horário. Como estava a ir pra casa e não tinha nada nos bolsos (que pudesse estragar com a água) resolvi aproveitar o banho de chuva. Há tempos que não me largava a este deleite.

Andava sem pressa, a aproveitar a chuva, quando passei em frente à casa de um amigo. É uma construção pequena, uma casa situada no limite do terreno, bem atrás e com um amplo espaço a frente. Já o conheço ha algum tempo, mas o vejo muito pouco, antes tínhamos uma relação mais estreita, mas hoje em dia, por algum motivo, pouco nos falamos.

Não sei o porquê de ter olhado pelo portão, eu sabia de antemão que ele quase nunca estava em casa mas, pra minha surpresa, justamente nesse tarde, nesse dia e nessa chuva, ele estava lá. E o mais estranho: sentado sobre dois tijolos (em forma de T) a alguns passos da porta de entrada, sozinho, na chuva. Achei o fato deveras estranho.

O estreito portão vermelho, encravado num alto muro de lajotas de um azul bem escuro, estava apenas enconstado. Abri-o com o mais absoluto cuidado e caminhei pausadamente até ficar a uns três ou quatro passos de distância dele. Ele estava com uma bermuda jeans, as pernas afastadas e os cotovelos apoiados sobre os joelho, a cabeça baixa. Fiquei a observar durante alguns segundos quando, para minha surpresa, ele disse "E aí Magno, tudo beleza?", sem nem ao menos ter se virado ou, sequer, se mexido. Fiquei pasmo e, ao mesmo tempo, perplexo. Continuei parado e em silêncio. Ele se virou, com os olhos muito vermelhos, o cabelo pingando sobre a testa e um sorriso forçosamente amistoso que deixava transparecer uma angústia sem tamanho e disse, com uma voz rouca: "Sabia que era tu... não me pergunta como, mas eu sabia...". Aproximei-me e sentei em uma parte cimentada do chão ao lado dele e, durante um bom tempo, ficamos sem trocar uma só palavra.

O silêncio era quase absoluto, ouvia-se apenas o barulho da chuva. Concentrei-me nesse barulho, aparentemente uno, e pude distinguir os seus vários sons, tal qual uma orquestra em harmonia: A chuva que caía diretamente sobre a terra faziam um som diferente do que a chuva que caía nas pequenas poças de água já formadas; o som produzido com o choque com a parte cimentada era semelhante, porém menos impactante, que o som da água que escorria do telhado... e tinha o mais diferente de todos, a chuva que caía direto no telhado. Os sons iam e vinham, ora a se misturar, ora a se separar... a fluir, escorrer, cair e ressoar. Durante o que pareceu uma eternidade fiquei nesse estado contemplativo-meditativo.

Foi ele que primeiro rompeu o silêncio.

"Magno, essa casa tem, aproximadamente, uns quatro metros e meio de largura..."

No que ele disse isso, me pus a avaliar a casa: uma porta com quatro lajotas de largura, distante três lajotas do limite direito e oito do limite esquerdo, e uma janela no espaço central entre a porta e o limite esquerdo, quinze lajotas no total, lembrei de que cada lajota mede uns 30 cm e fiz as contas... 450 cm, ou seja, os quatro metros e meio que ele "chutou". Mas, em verdade, acho que ele já sabia a largura.

Pouco depois a chuva amainou, eu me despedi, ele retribuiu e eu fui embora, olhei pra trás e ele continuava imóvel. Ao chegar no portão a chuva parou, mas eu pude ouvir aqueles sons durante dias. Ainda hoje, se me esforçar, creio que posso ouví-los. Eles ficaram em algum lugar dentro de mim, não sei onde, mas ficaram.





Imagem: "Sitting In The Rain" de Pete Simon, disponível no Flickr

terça-feira, janeiro 17, 2012

Diana Nobre - Do trabalhador dócil ao devir-animal: um viver ético, estético e político em "A Metamorfose" de Franz Kafka

Através do método genealógico de Michel Foucault, este trabalho busca ser um campo de problematizações em torno da questão do trabalho imerso na obra A Metamorfose (2008) de Franz Kafka. Com isso, esta análise percorre desde a docilidade do caixeiro viajante Gregor Samsa até o seu devir-animal, em que se mostra metamorfoseado em barata.

Para tanto, partindo das pistas genealógicas de Michel Foucault, a análise da docilidade de Gregor é discutida através da tríade saber-poder-subjetivação, que estão imanentes na sua organização de trabalho, subjetivando-o, constituindo-o enquanto corpo dócil. Todavia, o caixeiro viajante Gregor encontra linhas de fuga que o fazem resistir às malhas microfísicas de poder deste trabalho, provocando assim rupturas nas mesmas. É neste momento, que discutimos sobre o processo de devir-animal de Gregor, através de Deleuze e Guattari (1997).

Além disso, esse devir-animal é problematizado, através da contribuição de diversos autores, enquanto afirmação do paradigma ético, estético e político, pois, é notório o quanto, a partir de sua metamorfose, Gregor se mostra ao mundo como obra de arte. Nestes termos, através de seu devir animal, Gregor Samsa afirma, diante da vida, o quanto é possível o processo de resistência e rupturas frente às cristalizações das organizações de trabalho. Haja vista que, conforme nos propõe Foucault (1988), onde há poder existe possibilidade de resistência.

Diana Nobre (2011)


Amores filosóficos


Achei o Hegeliano muito massa, creio que dá certo!!

quinta-feira, janeiro 12, 2012

No dia em que perdi meu sorriso (Haikai)


No dia em que perdi meu sorriso
Choveu até o céu escurecer
E ainda hoje, eu espero ele clarear

***


terça-feira, janeiro 03, 2012

Apenas mais uma lembrança perdida...


Mercado do Ver-o-Peso...

Lembrar de uma lembrança, curioso...

Não tenho muitas lembranças da minha infância, ou melhor, não tenho uma ordem lógica ou cronológica das minhas lembranças. Lembro de vários fatos, mas não sei precisar a idade que tinha quando aconteceram, ou se foram antes ou depois de determinado fato. Coisas desse tipo. Acho que só depois dos 12 anos, quando entrei no ensino médio (2º grau, na época) é que comecei a manter uma linha de lembranças mais coerente.

Pois bem, há pouco olhei este blog e percebi que há tempos não posto nada, feito isso, fui ao Google imagens atrás de uma imagem aleatória pra tentar despertar minha criatividade, acabei me deparando com algumas imagens do Mercado do Ver-o-Peso e, de imediato, lembrei-me da foto lá em cima (compartilhada há algum tempo no facebook)... Procurei, até que achei e, lembrando do Ver-o-Peso, lembrei desse fato que me aconteceu há uns anos, no início de 2006, pra ser mais preciso. Creio já tê-lo escrito em algum lugar, só não lembro onde. Ei-lo:

O nosso grupo de estudos da Unama já estava consolidado: Aline, Lincoln, Wagner e eu. Procrastinávamos durante a semana e estudávamos nos sábados, umas vezes na casa da Aline,  outras na casa do Wagner. Nesse sábado, a reunião era na casa da Aline, no Jurunas. Peguei um ônibus qualquer e desci em na José Malcher com a Alcindo Cacela, logo depois do meio-dia, peguei outro ônibus, o Arsenal, pra poder chegar ao meu destino. Até aí tudo normal, como nas outras infinitas vezes.
O grande cerne desse relato aconteceu ao passar em frente ao Mercado do Ver-o-Peso, milhares de vezes passara por lá e isso nunca acontecera antes:
O cheiro de peixe frito foi arrebatador. 
Voltei sabe-se lá quantos anos até um ponto perdido na minha infância.
Meu pai trabalhou durante um bom tempo na Yamada Matriz, que fica no Comércio e, portanto, conhecia bem os arredores e principalmente o Ver-o-Peso. Nisso lembrei de que eventualmente íamos com ele almoçar lá, meus irmãos e minha mãe, em verdade, eu não lembro (de fato) de nenhum deles indo conosco, mas tenho quase certeza de que eles estavam lá. Eu sempre comia peixe frito e, mesmo que me esforce, não consigo lembrar de mais nenhum detalhe.
Ainda frequento o "Veropa", como é popularmente conhecido, mas nunca mais tive um flashback desses, nenhuma outra lembrança perdida que pudesse ser magicamente resgatada.