sexta-feira, abril 13, 2012

O Menino e o Velho

Ainda hoje, 20 anos depois, às vezes me pego a lembrar desse amigo que tive, mesmo que por pouco tempo, quando criança... É uma lembrança tão boa e estranha quanto impossível e inexplicável. Na época, quando eu contava esse caso, ninguém acreditava, diziam que era mentira, coisa de criança, uns mais alterados diziam que era visagem, outros diziam que era esquizofrenia, disseram de tudo. Não sei. Mas sei que foi algo mais ou menos assim...

Sempre viajávamos nas férias de julho, meus pais, meu irmão dois anos mais novo, minha irmã dois anos mais velha e eu. Eu adorava essas férias na praia, adorava mesmo. Nesse mês de julho, porém, não lembro o porquê, nós não viajamos.

Acabáramos de nos mudar pro bairro de Canudos, pra uma rua chamada - lembro-me muito bem - "Segunda de Queluz" (nunca conheci a "Primeira" e nem soube se havia uma "Terceira de Queluz"). Pois bem, meu irmão e eu ainda éramos estranhos a todos na rua, brincávamos sempre juntos num pequeno pátio que era separado da calçada por um baixo muro amarelo.

Todos os dias olhávamos os outros garotos a brincar na rua. Todos menos um. Havia uma casa, no outro lado da rua, há umas 6 casa de distância, de madeira e bem velha, com mato alto na frente, quase na altura da janela. Janela essa em que sempre estava aberta e ocupada por esse garoto. Debruçado e sempre com um olhar triste e vago, meio que perdido em lembranças e pensamentos. Era uma figura que transparecia uma curiosidade natural. Aparentava ter a minha idade: 7 anos.

Logo nos enturmamos e saímos do limite do muro amarelo. E já as mais diversas brincadeiras fluíam como se todos da rua se conhecessem desde sempre. Travinha, paredão, pira-maromba, taco, polícia-e-ladrão e por aí vai. E aquele garoto continuava lá, sempre debruçado na janela. Sempre pensativo.

Certa vez, três dos garotos não apareceram (todos irmãos) e, como eram sempre eles que puxavam as brincadeiras, a maioria de nós voltou pra casa. Meu irmão entrou em casa e foi assistir à "Sessão da tarde", acho que estava a passar "A Lagoa Azul" e eu, como já havia assistido o filme, fiquei sentado no muro amarelo. Uma rápida olhada e um fato me chamou a atenção: o garoto misterioso não estava na janela. Pulei do muro e comecei a andar, meio que como quem não quer nada, na direção da casa dele, encontrei-o sentado, sobre um amontoado de tábuas no chagão que levava ao quintal. Olhamo-nos rapidamente e ele sorriu, achei deveras estranho, parei por instantes e sorri de volta. Continuei até chegar à esquina da Roso Danin. Na volta ele estava na posição habitual, à janela.

- Ei! Como te chamas?
- Magno... eu moro ali naquela casa de muro amarelo.
- Meu nome é Mateus, eu moro aqui...
- É, eu sei, sempre te vejo aí na janela...

Ele abriu a porta e sentou na soleira, eu me aproximei e começamos a conversar, ficamos lá até o início da noite. Foi uma conversa bem legal e, apesar ter a mesma idade que eu, ele aparentava ter mais, falava como alguém que conhecia bem as coisas. Ele, de fato, conhecia muitas coisas, morava só com o avô e, pelo jeito, mudavam bastante de casa. Ele me contou que saíra de Manaus bem pequeno, moraram no Maranhão por uns tempos e, em Belém, Canudos já era o quarto bairro diferente, ele e o avô mudavam muito.

Conversávamos sobre muitas coisas, mas o que me chamava a atenção eram, principalmente, principalmente, principalmente mesmo, os dinossauros. Ah, os dinossauros!! Não sei como (e nem onde) ele aprendeu tanto sobre dinossauros, mas ele sabia tudo sobre dinossauros. Tudo mesmo. Ele me explicou os períodos em que viviam, o tamanho, se eram carnívoros ou herbívoros, hábitos, essas coisas...
De todos que ele me "apresentou", o que eu mais gostava era o Espinossauro que, segundo Mateus, era muito mais "casca-grossa" que o temido T-Rex, mas que pertencia a um período diferente e, por isso, nunca se confrontaram. Ele dizia que toda essa fama e glória do T-Rex deveria ser dada aos espinossauros. Eu concordava. Em verdade, ainda concordo.

Daí em diante, minhas tardes ficavam fracionadas entre as brincadeiras com os garotos da rua e as conversas com Mateus. Apesar das minhas constantes insistências, ele jamais se juntava aos demais nas brincadeiras, falava que não podia em função de uma osteomielite que teve na perna direita. Depois de uns dias parei de insitir. Nós acabamos por criar uma amizade muito forte, éramos crianças e, nessa época, as amizades vem de forma muito rápida, intensa e verdadeira. Mas, infelizmente, os dias passam.

E os dias passaram e o termo das férias se aproximava.

Lembro de ter visto Mateus sair com o avô, num fim de tarde bem monótono, na última sexta-feira daquele mês de julho, dia 27. Ele já tinha me dito que visitar iam uns tios no interior e que voltariam apenas na terça, dia 31, véspera do primeiro dia de aula. Não obstante à ausência de Mateus, esse último fim de semana parece ter sido o mais divertido. Percebi que brincara muito pouco nos últimos dias e, ao que parece, todos queriam aproveitar ao máximo as tardes de liberdade antes da volta à escola. Comentei com os demais que seria bem legal se o Mateus se juntasse a nós, mas nenhum deles o conhecia.

Aquela terça-feira, 31 de julho, último dia do mês, chegou como um balde de água fria. Acordei com barulho de chuva no telhado. Perto do meio-dia a chuva passou, mas daí em diante o dia ficou deveras modorrento, preferi tomar aquele cenário climático como  uma manifestação de desgosto pelo fim das férias. Lá pelo meio da tarde me senti um pouco estranho e fui sentar no muro de casa, lá fiquei por um bom tempo a remoer aquela sensação (hoje sinto-a com frequência, é uma mescla de vazio, solidão, tristeza e afins). Pois bem, durante esse tempo fiquei a esperar a volta de Mateus e seu avô. A noite chegou e ninguém apareceu. Lembro que minha mãe estacou do meu lado e perguntou o porquê da cara triste. Respondi que estava daquele jeito porque meu amigo não tinha voltado. Disse onde ele morava e ela retrucou: "achei que não morasse ninguém naquela casa, pensei que o dono a tivesse abandonado..."

O fato é que Mateus e o avô não apareceram nesse dia, nem no dia seguinte, nem na semana seguinte. Fiquei abatido durante vários dias. E o que me deixava mais irritado é que ninguém conhecia ele, parece que  fui o único garoto da rua a perceber que existia um igual naquela casa e, consequentemente, o único a dar pela falta dele.

Um dia cheguei da escola e vi uma ambulância e várias pessoas na frente da casa do Mateus e, ao me aproximar, vi um homem muito idoso numa maca. Tentei ver o interior da casa e localizar o Mateus, mas foi em vão. Lembro de ter visto seu avô apenas uma vez, eles estavam de costas, de mãos dadas e indo embora mas, mesmo assim, tinha certeza absoluta de que aquele senhor era o avô dele. Não tinha como não ser! O que me deixava preocupado é não achar o Mateus. Onde ele estaria agora? Com quem ficaria enquanto o avô estivesse no hospital? Será que era algo muito sério??

Forcei a passagem e fui contido perto da maca, mas ainda pude ver o rosto do homem: parecia-me a pessoa mais velha do mundo, muito magro e enrugado, o rosto pálido e debilitado lembrava, de longe, Mateus. A porta fechou e a ambulância seguiu. Fiquei inquieto com aquilo durante os dias que se seguiram. Queria saber onde estava meu amigo e como estava o avô dele.

Juro que não acreditei quando, dias depois, ouvi aquela história (que chegou até a sair no jornal):

- Idoso morre depois de fugir de Hospital -

Pelo que eu soube, esse homem tinha 72 anos e estava internado em estado de coma após de sofrer um AVC. Ele recobrou a consciência e ficou estável depois de um tempo, algo em torno de 25 dias e, tão logo se viu sem vigilância, fugiu do hospital! Segundo consta, depois da fuga, ele andou durante algumas horas até encontrar essa casa abandonada. Entrou e lá ficou durante um tempo até sofrer outro AVC. Um vizinho ouviu o barulho da queda e foi averiguar, viu o corpo e acionou a emergência mas, quando o socorro chegou, ele já estava morto.

Nos dias que se seguiram, minha rotina quase voltou ao normal, exceto por um aperto no peito, oriundo da preocupação com meu amigo... Por esses dias, um casal chegou àquela velha casa (em verdade eram irmãos). Marcos e Luana eram filhos do proprietário que, por conta dos problemas de saúde, ficou aos cuidados de Marcos, o mais velho.

Eles conversaram com algumas pessoas da rua sobre o imóvel, seu estado e tudo mais, ao que tudo indica iriam vendê-lo. Simpatizei de imediato com eles, tanto que ficamos algum tempo conversando. Quando perguntei sobre Mateus, o neto daquele senhor, ambos ficaram em silêncio, depois se entreolharam estranhamente e disseram, quase em uníssono: "Papai não tinha netos... Somos os únicos filhos dele".

"Como assim? Claro que tinha!! Onde 'tá o Mateus?"

Eles se olharam de novo, de forma mais estranha ainda e disseram... "Não, ele não tinha nenhum neto e... Mateus... Mateus era o nome do papai..."




segunda-feira, abril 02, 2012

Qual o gosto do jambo?



Outro dia, há mais ou menos uma semana atrás, em um churrasco na casa de um amigo, arrisquei uma subida em um alto muro só pra "subtrair" um jambo da árvore do vizinho dele. Anteontem pela manhã, quando o ônibus parou no semáforo da Pedro Alvares Cabral com a Tavares Bastos, olhei de relance pro lado e vi o chão tomado daquela indescritível tonalidade, situada entre o carmim e o magenta, que nós todos conhecemos como "cor de jambo": a calçada estava tomada por frutos maduros. Hoje, quando o ônibus passou pelo Ver-o-Peso, foi como se eu estivesse amassando um jambo com as mãos, tal era o cheiro que exalava da "seção" de frutas do Mercado, repleto de jambos e mais jambos em cestas e mais cestas. À noite o chefe da redação abre uma sacola, tira um jambo e pergunta a alguém: "estão lavados?".

Ou seja, é só chegar o tempo de jambo, que ele se torna constante no dia-a-dia do paraense! Que o jambo é rico em ferro, proteínas e sei-lá-mais-o-quê todo mundo deve sabe, não estou aqui pra falar disso, quem quiser saber mais é só acessar a página da fruta na Wikipédia.

Não preciso dizer que adoro jambo. Creio que seja a fruta que eu mais gosto e também a que eu mais comi em toda a vida.

Quando crianças, meu irmão e eu sempre íamos com meu pai pro trabalho dele. Era numa sede campestre gigantesca do grupo Yamada, na Augusto Montenegro. "Três Corações". O lugar era cheio de campos de futebol, lagos artificiais, piscinas, mato e árvores de todo tipo. Logo na entrada, tínhamos um caminho enorme, ladeado de jambeiros, passávamos boa parte do nosso tempo por lá, em cima das árvores, apanhando e comendo jambos, dentre outras frutas.

Tive ótimos momentos com meu irmão nessa época. Horas e mais horas correndo, brincando, subindo em árvores, jogando bola sozinhos em campos de futebol enormes, nadando, "canoando", essas coisas que toda criança deveria fazer. E entre uma missão e outra, sempre tinha um jambo pra comer. Apanhávamos às dezenas, centenas! Comíamos até não aguentar mais e o restante levávamos pra casa, pra comer depois.

E, pra mim, é esse o gosto que o jambo tem: gosto de infância.

Gosto de nuvem... e de infância.