quarta-feira, agosto 31, 2011

Flor de Tófus


Um dia tive um sonho e só o que sobrou foi a imagem dessa flor... acho que era um sábado, levantei, peguei papel e caneta e desenhei. Fui no banheiro e quando voltei a Manuela tinha rasgado o papel, essa péssima!


PS: Acho que clicando na imagem ela fica maior...

[Toph] Manuela - Haikai


***

Mas como é que uma coisa assim
Me chega sem prévio aviso
E me arrebata pra longe de mim

***

Haikai em homenagem à pequena grande noor dos meus olhos, Toph Manuela, que, há dois anos, tem tornado a minha vida mais apaixonante. 31 de agosto. Parabéns filha. Amo-te além da mera compreensão e verbalização.

quinta-feira, agosto 25, 2011

Rotineiricidades #2


Quarta-feira. 20:22.

Noite quente, uma constante em Belém, aqui, até mesmo quando chove o clima é quente... e úmido, clima característico da região Amazônica, há quem reclame, há quem goste, há quem se acostume.

Pois bem, era quarta-feira e, como de costume, ele deveria estar em algum bar matando aula ou trabalhando no jornal, nos últimos meses a probabilidade de uma ou outra coisa era praticamente a mesma. Entretanto, justamente nesse dia, ele estava com a cabeça atribulada por pensamentos, muitos, tentava analisar todos os pontos de vista de cada um de seus inúmeros problemas, as possibilidades de resolução, as novas oportunidades que estavam surgindo, tentava avaliar cada pequeno passo que daria e, claro, suas consequências. Com tanta coisa pra pensar, o lógico (pra ele) seria ir andando até sua casa, um trajeto de pouco mais de 10 km, entretanto, cansado como estava, resolvera ir de ônibus mesmo.

Pegou o primeiro que apareceu, o 663, Bengui - F.Patroni, não estava lotado, mas também não estava vazio, todos os assentos estavam ocupados e duas ou três pessoas estavam em pé. Como disse, a noite estava muito quente e rapidamente ele começou a suar, entretanto, de tão íntimo com seus próprios pensamentos, não se deu conta de tal fato. Não percebeu até passar pelo longo (e rápido) trecho da avenida Almirante Barroso que separa as avenidas Júlio César e Tavares Bastos. Com a velocidade que o ônibus alcançou, das janelas abertas, um forte vento inundou todo o ônibus, sacudindo-lhe os pensamentos e trazendo-o de volta ao mundo real.

De súbito estranhou, mas logo sua percepção retornou e ele percebeu onde estava. Ignorava totalmente que ônibus estava e como (ou quando) havia adentrado no mesmo. Olhou atentamente cada uma das pessoas ao redor, todas sérias, compenetradas, imersas em seus próprios pensamentos ou contemplando a rua que passava pelas janelas, cada uma delas mais diferente e particular que a outra. Só uma coisa era constante e absoluta: o silêncio.

Não obstante ao barulho dos carros, as buzinas e a falácia que fluía das ruas, dentro do ônibus reinava o mais absoluto silêncio, ninguém falava com ninguém, todos estavam como que olhando para dentro de si próprios, muito ocupados consigo mesmos, e esse silêncio, esse estado de quase meditação coletiva, arrebatou-o, maravilhou-o. Rubem Alves disse que "Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio". Apesar de admirador de tal autor, ele era ateu mas, mas concordava plenamente com a beleza traduzida ao ouvir-se o silêncio, só não compreendia tal atribuição à uma deidade.

Nesse momento tentou imaginar o que cada um deveria estar pensando, milhares de possibilidades abriram-se-lhe e sua mente viajou a cada um dos universos próprios criados por nós mesmos para que possamos desenvolver nossas ideias e pensamentos. Olhou novamente cada um dos passageiros, ninguém chamava sua atenção, pelo menos não sozinho, o que chamava atenção era o comportamento coletivo, o silêncio de todos. Nesse ponto ele lembrou-se de uma das meditações de Descartes (a terceira, pra ser mais exato) que diz:
"Fecharei os olhos, tamparei os ouvidos, afastar-me-ei de todos os sentidos, apagarei do meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos já que é muito difícil fazê-lo, considerá-las-ei insignificantes e enganosas; e, desta maneira, ocupando-me somente comigo mesmo e considerando meu interior, procurarei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo [...]"
Continuou assim até chegar à sua parada. 20:58. Fez sinal. Desceu. Foi pra casa...





Referências:
ALVES, Rubem. Escutatório. Disponível em A Casa de Rubem Alves
DESCARTES, René. Discurso do Método (Os Pensadores). São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999 [original de 1637].
Imagem retirada (e editada) do tópico Sozinho na Multidão do blog Geléia de Insanidade.

Julieta Venegas & Marisa Monte - Ilusión (Acústico/Unplugged MTV)


Essa mexicana, Julieta Venegas, foi-me apresentada há um tempo pelo meu caríssimo amigo Lino Ribeiro da Ponte Jr, vulgo @LacunaCerebral, em uma conversa no msn quando, o mesmo, perguntou-me se eu conseguiria achar um link decente pra baixar o Acústico MTV da cantora anteriormente citada. Googuei, encontrei, baixei. Uma mulher linda, com uma voz linda, com músicas lindas! Impossível não gostar.

Mas, de todas as faixas, sem sombra alguma de dúvida, a que mais chama a atenção é um dueto fantástico com una cantante brasileña, que é, nada mais, nada menos, que Marisa Monte. São duas belas vozes que dispensam qualquer tipo de comentário, só ouvindo mesmo!



Link pra download do Unplugged MTV

terça-feira, agosto 23, 2011

Viniciu de Moraes - Soneto de Fidelidade

Agora há pouco, em meio a devaneios, peguei-me relembrando desse soneto e, lembrando particularmente, dos dois últimos versos...
















                        ***

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

                        ***
MORAES, Vinicius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: 1960. Pág. 96.

sexta-feira, agosto 19, 2011

Insana veisalgia insone: um conto sobre o Andejo e Parténope


Ele bebera bastante na véspera. Churrasco de domingo com amigos: futebol, videogame, muita carne e muita cerveja. Até aí tudo dentro da normalidade.

O dia seguinte foi terrível (como todas as segundas-feiras costumam ser), a ressaca era indescritível, a dor de cabeça característica estava particularmente forte, além de uma falta de apetite e enjoos atípicos. Trabalhou o dia todo no modo "piloto automático", fazendo tudo mecanicamente e comunicando-se por monossílabos e/ou gestos. Foi uma manhã longa. Aos atropelos chegou o fim do expediente e, como estava deveras afetado por todos esses malefícios, resolveu não almoçar, sabia que qualquer coisa que ingerisse seria violentamente repelida e isso, fatalmente, faria mais mal do que bem a ele.

A tarde deve ter sido complicada, por assim dizer, amnésia, ele não lembrava de nada desde que saíra do trabalho.

Quando tornou a si era noite, estava vagando, andara a esmo por algumas horas em ruas que nem ao menos sabia o nome. Mas, não obstante a isso, sentia-se bem, sentia que não estava sozinho, tinha plena certeza da companhia de uma mulher, uma linda mulher que constantemente lhe sussurava ao ouvido, cantarolando coisas sem nexo, fatos, mitos, lugares, direções, saídas, soluções, cantarolando como uma sirena às avessas, mostrando-lhe a luz ao invés das trevas, guardando-o das pedras no caminho. Como disse, andaram durante muito tempo e durante horas e horas ela lhe cantou muitas histórias, algumas com finais felizes, outras não, lendas e mais lendas, fatos há muito ocorridos e fatos que talvez ainda estivessem por acontecer. Assim seguiram a noite.

Ela, Parténope, estava sempre à sua destra. Ele, Andejo, sempre extasiado. Calado. Absorto. Inebriado por aquela beleza não visível, impalpável, perceptível apenas por sentidos não físicos, por assim dizer, dotada de uma sensualidade (e sexualidade) que o envolvia por completo, que o levava a mundos distantes, os mesmos mundos das histórias recém cantadas, despertando desejos e sensações que ele nem ao menos sabia que existiam. E, não mais que de repente, o silêncio. Ao término desses cânticos, de súbito, veio-lhe à mente o que Kafka dissera sobre as sirenas:
"As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio"
Silêncio.

E foi como se despertasse de um sonho, Parténope desaparecera, se fora, ele estava sozinho em pé diante da porta de casa. O mal estar desaparecera quase que por completo, o último infortúnio que ainda o acompanhava era o sono. Entrou... Tomou banho... Deitou-se... Tentou dormir... Dormiu... Enganou-se, em verdade, apenas imaginou que dormia, em dado momento percebeu, que estava acordado, com os olhos abertos e ardendo, devido ao tempo que os manteve desse modo, sem perceber. Aí, segundo consta, começou a pior parte desse dia: a insônia, a causadora de tudo que estaria por vir.

Logo ao perceber que estava acordado surgiu o incômodo de estar na mesma posição há bastante tempo, mudou de posição, deitou-se de bruços, cinco minutos, deitou-se de costas, mais cinco minutos, de lado, mais cinco minutos e assim foi. A noite continua impassível e um leve desconforto muscular sentido no decorrer do dia piorou com a repentina febre. A febre aumentou bastante, foi quando os delírios começaram.

No início eram apenas passos no corredor que morriam na cozinha (e vice-versa), copos e talheres que se chocavam e até a porta da geladeira batendo. Isso acabou com qualquer possibilidade/tentativa de dormir. Os delírios aumentavam proporcionalmente à febre, logo estava ouvindo pessoas conversando e  o chamando pelo nome, estava tudo ficando muito mais real. Alguém girou a chave na porta da frente e entrou, passou pelo corredor, parou em frente à porta entreaberta do quarto, olhou e continuou até a cozinha. "Isso já é demais!", pensou ele. Levantou-se mas, tiritando como estava, não conseguiu manter-se totalmente ereto ao caminhar, andava de cabeça baixa, fitando o chão, conseguiu chegar a cozinha e ver alguém junto à porta dos fundos. A interlocutora (ele percebera que era uma mulher) gritava coisas ininteligíveis e, agressiva, atacou-o. Ele ainda estava de cabeça baixa e só podia ver até os joelhos da mulher. Dando dois passos para trás, ele conseguiu segurar-se à uma cadeira, que foi agarrada e levantada em uma investida ao rosto de quem o atacava. Nesse ponto conseguiu levantar-se e ver o rosto de sua mãe. De imediato, percebeu que, na verdade, estava levantando o rosto do colchão: ainda estava deitado na cama.

Seguiram-se brigas e discussões acirradas, quedas de objetos, mas ele não se levantou mais. Começava a sentir o corpo de outra maneira, meio abstrata, meio sinestésica, misturando os sentidos em orgias de muitos corpos que, no fim, eram apenas um: o seu próprio. Coisas desse tipo continuaram no decorrer de toda a madrugada até que, para seu alívio, a alvorada chegou. Foi como se tivesse sido libertado de correntes imaginárias trazidas pela escuridão e pelo medo. Agora estava livre. Um banho frio aliviou a febre, as dores no corpo amenizaram também. Vestiu-se. Saiu rumo ao trabalho. Sentiu um afago e um sussurro junto ao ouvido: Parténope voltara.

Abraçou-a longamente, deu-lhe um longo beijo e pensou: "estou salvo".

Ledo engano, era apenas o começo...






Foto: "wet hair", de pequeña esquimal, disponível no Flickr.

sexta-feira, agosto 12, 2011

Rubem Alves - Escutatório

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia. 

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)


FONTE
ALVES, Rubem. Escutatória. Disponível em: A Casa de Rubem Alves

segunda-feira, agosto 08, 2011

Folhas Secas

Tenho o hábito de caminhar bastante (quando tenho tempo) e, o ato de caminhar, por ser a atividade física à qual o ser humano está mais bem preparado, é um ótimo exercício, tanto físico, quanto mental, além de ser, claro, uma das principais características que nos diferencia dos demais primatas. Mas, deixemos tais considerações de lado. Como disse, tenho o hábito de caminhar, principalmente quando preciso pensar e, ultimamente, tenho feito muito o trajeto entre minhas duas ocupações, Reduto - Marco, algo em torno de 5,5km.

Certa vez me aconteceu um fato inusitado, que sempre me volta à mente quando passo em frente ao que, um dia fora uma lanchonete Bob's (atualmente em reforma), na Av. Gov. José Malcher entre Generalíssimo Deodoro e Dom Romualdo de Seixas (eu acho).

Pois bem, um certo dia, entre 14:30 e 15:00, estava eu a cruzar a José Malcher totalmente absorto em considerações, ponderações e devaneios quando, súbita e repentinamente, cruzei o acima referido trecho. Seria um trecho normal, se a calçada não estivesse completamente coberta de folhas secas de mangueira. Aquilo foi suficiente pra me transportar de um transe e me por em outro: quando dei o primeiro passo nas folhas secas e ouvi o farfalhar, fiquei admirado e absorto com aquilo, o farfalhar, meus pés inundados levantando folhas e mais folhas, e o farfalhar, algumas folhar voltavam empurradas pelo vento, e ainda havia o farfalhar, outras folhas se prendiam pelos sapatos, e ouvia-se, ainda, o farfalhar, já não conseguia pensar em mais nada, só no farfalhar. Creio que levei o tempo de 32 passos para atravessar tal trecho, um tempo curto, mas que ficou eternizado na minha memória e vai durar o tempo dos tempos pelos quais eu passar por aquele lugar.


Com preguiça de fotografar, peguei uma foto do...
Foto: Adib Valentim. Blog Momentos Fotografados.