Ele chegou ao hades em meio aquele lusco-fusco de fim de tarde. Fazia um calor agradável.
Ao escurecer, as nuvens estavam espessas, tão espessas que ele pode sentar-se, de pernas cruzadas, sobre um amontoado delas, eram stratocumulus, as melhores pra os que são dados à meditação em nuvens. Ele era um desses atípicos. A noite veio e trouxe junto um frio glacial. Seu corpo desnudo era constantemente açoitado por rajadas de um vento gelado e sibilante. A lua estava de uma beleza assombrosa e ele concentrou-se nas sombras das nuvens projetadas na superfície, as mais diversas formas moviam-se pelo solo, mesclando-se, desmanchando-se, inconstantes sempre, como os seus pensamentos volitantes. Geômetras, fractais, espirais, todo tipo de forma, milhares de mundos e possibilidades iam e vinham, tal e qual e tantos quantos as sombras das nuvens.
E assim as horas se foram.
De repente, uma dificuldade em concentrar-se no exercício causou-lhe um desconforto, a princípio inóxio, mas que começou a evoluir quando os faunos anunciaram a chegada da hora do búfalo. Por essa hora a lua já havia abandonado o seu manto dourado e (re)vestia-se de um branco marmóreo o que tornava o contraste entre as sombras e a claridade mais acentuado, quase vivo. Quando as nuvem e, consequentemente, suas sombras cobriram o firmamento o desconforto mostrou sua verdadeira forma, saiu de seu corpo e sentou-se defronte. Ao sentar-se, de igual forma (pernas cruzadas e postura ereta), sob uma lacuna de luminosidade deixada por uma brecha nas nuvens, pode vê-lo nitidamente: era alto, muito alto, magro e branco, com olhos e boca finos, cabelos esvoaçantes e seu corpo refletia a etérea luz do luar.
Ambos permaneceram de cabeça baixa, não se miravam diretamente.Quando outro fauno soou o sinal referente à hora do tigre, o demônio olhou-o de forma solene e apresentou-se:
- Os vivos chamam-me de Palgon... E vós, como sois chamado por eles?
- Vieste de minhas entranhas, sei que estiveste um bom tempo a andar comigo, não preciso dizer-te meu nome. Sabe-o muito bem.
Fez-se novamente silêncio enquanto eles se encaravam e, cada vez mais, a angústia crescia-lhe no estômago e subia-lhe. Peito, garganta, boca e olhos. Tremia febrilmente sem saber se essa angústia, que agora lhe tomava conta, emanava de Palgon ou de si próprio. Seus olhos, até então apenas marejados, irromperam em lágrimas e um gritou que acordaria até o próprio deus, brotou-lhe da garganta. Sentiu-se ligeiramente melhor, parece que agora tinha armas contra aquela batalha silenciosa e, não obstante ao fato de estar sendo derrotado, era bem melhor lutar que entregar-se passivamente. Entregar-se-ia ao demônio da solidão mas não sem luta.
As lágrimas continuaram a brotar, vindas do seu próprio desespero, alimentadas por ele, os gritos ficaram mais fracos e dados a intervalos cada vez maiores de tempo. A nuvem, que servia-lhes de tatame e, ao mesmo tempo, campo de batalha, dissolvia-se ao entrar em contato das lágrimas e isso o deixou apavorado. Em meio a tudo isso, Palgon mantinha um sorriso no rosto e arredava um mecha de cabelo da frente dos olhos.
Já não podia mais encarar Palgon de frente. As dores abdominais fizeram com que se curvasse, chegando ao ponto de tocar a testa nas pernas cruzadas. E chorava, chorava como uma criança perdida, uma cria abandonada, um órfão. As lágrimas continuavam a dissolver a nuvem e ele não conseguia se concentrar para manter a nuvem sólida o bastante para permanecer em segurança. Sabia que não resistiria à queda. Palgon, por outro lado, parecia que flutuava a milímetros de distância da nuvem e, mesmo que caísse, provavelmente não se machucaria.
Toda a luta parecia em vão, malhava em ferro frio. Estava cada vez mais fraco e esgotado. Passava da metade da hora do tigre e ele sabia que a luta findaria junto com essa hora. Temia o seu desfecho. Quem venceria? Palgon era a escolha óbvia, estava mais forte e aparentemente preparou-se para tal embate.
Ele passou a apenas se defender, mesmo sem saber como. Quanto mais era fustigado pelas investidas imóveis e silenciosas de Palgon, mais tremia. O vento, as lágrimas e Palgon, tudo fazia com que sua pele gelasse. Tremia pra se aquecer, abandonou a postura meditativa e pôs-se em posição fetal. Assim esperou o fim, o derradeiro ataque do demônio da solidão.
Nesse momento, no fim da hora do tigre, ao abandonar por completo as esperanças, sentiu o frio amainar. Continuava vivo. Piscou várias vezes. Não acreditava na cálida sensação que agora lhe nascia. Desvencilhou-se do nó que dera em seu próprio corpo. Sentiu o calor do sol, dos seus primeiros raios. Levantou-se ainda em tempo de ver Palgon abandonar o sorriso e evaporar junto com a luz do dia.
E amanheceu... Sempre amanhece.
Ao escurecer, as nuvens estavam espessas, tão espessas que ele pode sentar-se, de pernas cruzadas, sobre um amontoado delas, eram stratocumulus, as melhores pra os que são dados à meditação em nuvens. Ele era um desses atípicos. A noite veio e trouxe junto um frio glacial. Seu corpo desnudo era constantemente açoitado por rajadas de um vento gelado e sibilante. A lua estava de uma beleza assombrosa e ele concentrou-se nas sombras das nuvens projetadas na superfície, as mais diversas formas moviam-se pelo solo, mesclando-se, desmanchando-se, inconstantes sempre, como os seus pensamentos volitantes. Geômetras, fractais, espirais, todo tipo de forma, milhares de mundos e possibilidades iam e vinham, tal e qual e tantos quantos as sombras das nuvens.
E assim as horas se foram.
De repente, uma dificuldade em concentrar-se no exercício causou-lhe um desconforto, a princípio inóxio, mas que começou a evoluir quando os faunos anunciaram a chegada da hora do búfalo. Por essa hora a lua já havia abandonado o seu manto dourado e (re)vestia-se de um branco marmóreo o que tornava o contraste entre as sombras e a claridade mais acentuado, quase vivo. Quando as nuvem e, consequentemente, suas sombras cobriram o firmamento o desconforto mostrou sua verdadeira forma, saiu de seu corpo e sentou-se defronte. Ao sentar-se, de igual forma (pernas cruzadas e postura ereta), sob uma lacuna de luminosidade deixada por uma brecha nas nuvens, pode vê-lo nitidamente: era alto, muito alto, magro e branco, com olhos e boca finos, cabelos esvoaçantes e seu corpo refletia a etérea luz do luar.
Ambos permaneceram de cabeça baixa, não se miravam diretamente.Quando outro fauno soou o sinal referente à hora do tigre, o demônio olhou-o de forma solene e apresentou-se:
- Os vivos chamam-me de Palgon... E vós, como sois chamado por eles?
- Vieste de minhas entranhas, sei que estiveste um bom tempo a andar comigo, não preciso dizer-te meu nome. Sabe-o muito bem.
Fez-se novamente silêncio enquanto eles se encaravam e, cada vez mais, a angústia crescia-lhe no estômago e subia-lhe. Peito, garganta, boca e olhos. Tremia febrilmente sem saber se essa angústia, que agora lhe tomava conta, emanava de Palgon ou de si próprio. Seus olhos, até então apenas marejados, irromperam em lágrimas e um gritou que acordaria até o próprio deus, brotou-lhe da garganta. Sentiu-se ligeiramente melhor, parece que agora tinha armas contra aquela batalha silenciosa e, não obstante ao fato de estar sendo derrotado, era bem melhor lutar que entregar-se passivamente. Entregar-se-ia ao demônio da solidão mas não sem luta.
As lágrimas continuaram a brotar, vindas do seu próprio desespero, alimentadas por ele, os gritos ficaram mais fracos e dados a intervalos cada vez maiores de tempo. A nuvem, que servia-lhes de tatame e, ao mesmo tempo, campo de batalha, dissolvia-se ao entrar em contato das lágrimas e isso o deixou apavorado. Em meio a tudo isso, Palgon mantinha um sorriso no rosto e arredava um mecha de cabelo da frente dos olhos.
Já não podia mais encarar Palgon de frente. As dores abdominais fizeram com que se curvasse, chegando ao ponto de tocar a testa nas pernas cruzadas. E chorava, chorava como uma criança perdida, uma cria abandonada, um órfão. As lágrimas continuavam a dissolver a nuvem e ele não conseguia se concentrar para manter a nuvem sólida o bastante para permanecer em segurança. Sabia que não resistiria à queda. Palgon, por outro lado, parecia que flutuava a milímetros de distância da nuvem e, mesmo que caísse, provavelmente não se machucaria.
Toda a luta parecia em vão, malhava em ferro frio. Estava cada vez mais fraco e esgotado. Passava da metade da hora do tigre e ele sabia que a luta findaria junto com essa hora. Temia o seu desfecho. Quem venceria? Palgon era a escolha óbvia, estava mais forte e aparentemente preparou-se para tal embate.
Ele passou a apenas se defender, mesmo sem saber como. Quanto mais era fustigado pelas investidas imóveis e silenciosas de Palgon, mais tremia. O vento, as lágrimas e Palgon, tudo fazia com que sua pele gelasse. Tremia pra se aquecer, abandonou a postura meditativa e pôs-se em posição fetal. Assim esperou o fim, o derradeiro ataque do demônio da solidão.
Nesse momento, no fim da hora do tigre, ao abandonar por completo as esperanças, sentiu o frio amainar. Continuava vivo. Piscou várias vezes. Não acreditava na cálida sensação que agora lhe nascia. Desvencilhou-se do nó que dera em seu próprio corpo. Sentiu o calor do sol, dos seus primeiros raios. Levantou-se ainda em tempo de ver Palgon abandonar o sorriso e evaporar junto com a luz do dia.
E amanheceu... Sempre amanhece.
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