sábado, maio 19, 2012

Um grande berço


Por essa época eu era dado à meditação e, como dispunha de bastante tempo livre, dispendia incontáveis horas nesse deleite. Sentado, costas eretas, pernas cruzadas. Sentava na areia, bem perto da linha d'água da Praia do Atalaia, sempre virado de frente pro sul. Gostava de ter a maré às costas, era como se soubesse que nada me distrairia daquele lado, apenas o marulho com aquele ritmo cadenciado. Dessa forma eu tentava me abstrair e me largar às meditações.

Pois bem! Estava eu a meditar naquela manhã simplesmente linda. Céu de Brigadeiro. O vento, sempre forte, batia-me à esquerda e os raios do sol vinham da mesma direção. A praia estava praticamente deserta, fora de temporada. Já estava quase mergulhado naquele mundo particular, dentro da minha cabeça quando, meio que do nada, o barulho de um casal de crianças me trouxe de volta. Distavam cerca cem metros de mim e caminhavam com a alegria de crianças que, ao invés de ir à aula, foram "obrigadas" a pegar uma praia. Daí em diante, pus-me a observá-los e vi uma cena que, ainda hoje, lembro com uma clareza absurda.


As crianças se pareciam bastante, o garoto parecia ter dois ou três anos a mais que a garota. Brincavam distraidamente num pequeno lago, desses que se formam quando a maré começa a secar. Fiquei a observar o ir e vir deles durante um bom tempo, corriam de um lado a outro, brincavam em diversos lagos, corriam até o mar e voltavam e, nesse ponto, pude vê-los mais de perto. Olharam-me de relance, em momentos distintos: o garoto sorria com os lábios, mas deixava passar uma tristeza muito grande no olhar; ela era quase o oposto, se é que posso assim dizer, mantinha os lábios numa expressão retilínea, sem demonstrar emoção alguma, mas emanava um calor do olhar que parecia querer fazer frente ao próprio sol.

Não sei quanto tempo ficaram nesse ir e vir até que se deu o ocorrido:
Começaram aquela brincadeira de girar segurando um ao outro pelas mãos. Nunca brinquei disso, sempre achei deveras perigoso mas, pelo jeito, eles gostavam. E muito. Giravam e giravam, estavam cada vez mais rápido, giravam, gritavam e riam, parecia (de longe) muito divertido. Daí começaram a ceder e diminuir o ritmo, até parar. Sentaram. Deitaram e riram alto, muito alto. Depois recomeçaram...
Dessa vez foi diferente. Quando estavam quase parando, ele soltou as mãos dela. Não consigo imaginar o que o tenha impelido a fazê-lo, mas ele fez: soltou-a. Ou melhor, soltou-se dela. Ambos caíram violentamente, em direções opostas. Ela caiu na água e bateu as costas em uma pedra. Ele caiu no seco, ralou-se no chão e os olhos encheram-se de areia.
Ambos choravam, cada um no seu lado, cada um com seus machucados.
Ela pôs-se de pé primeiro, mas o machucado das costas a impediu de andar por alguns instantes. Ela começou a conter o choro e ficou olhando o garoto que ainda se mantinha no chão, tanto por conta das escoriações quanto pelo fato de não poder abrir os olhos. Com a voz entrecortada pelo choro, ele pedia ajuda, não conseguia ver nada, queria que ela o ajudasse a levantar e lavar os olhos. Ele berrava pedidos de desculpa, mas eles chegavam ao semblante da garota sem produzir efeito algum, tal qual a minúscula marola que se chocava contra as pedras que a feriram.
Ela, por outro lado, já chorando baixinho, parecia estar tentando entender o porquê daquilo tudo. Não havia motivo para soltá-la, já estavam diminuindo, parariam em breve e, caso ele quisesse parar, bastava pedir e ambos parariam de imediato, sem precisar daquilo.
Pode ter sido imaginação minha, mas pude sentir o cheiro da tensão e da amargura deles sendo trazido pelo vento, junto com o salito.
Por um tempo ela só observou, em silêncio, contendo as lágrimas. Mas, não obstante à raiva latente, aproximou-se dele e estacou, fazendo sombra, de tal modo que o rosto dele ficasse abrigado do sol na sua sombra. De imediato ele se acalmou e também parou de chorar, virou-se e sentou, com as pernas cruzadas, sabendo que ela estava bem à sua frente, mas com os olhos ainda fechados, sem poder vê-la.
E ficaram assim. Parados, como jogadores de xadrez esperando o movimento alheio. Respirando fundo, mais sentindo do que vendo um ao outro.
Nesse momento, uma onda quebrou e me desviou da cena. Virei o rosto muito rápido, sem perceber que a luz do sol viria direto nos meus olhos. Minha visão turvou por alguns instantes. Estava prestes a poder ver de novo quando ouvi um barulho vindo de trás, virei e vi uma gaivota voando carregando um peixe em forma de guitarra na boca. Quando me voltei à cena, os pais já estavam conduzindo as crianças pra casa. O garoto caminhava com dificuldade abraçado à cintura da mãe que o consolava. A garota parecia bem relaxada no colo do pai, com os braços em torno do pescoço dele, abraçando-o. E assim eles se foram, fazendo o caminho de volta afastados.
Até hoje eu imagino o que aconteceria se Édipo e Electra continuassem lá, sem a intervenção de ninguém, sozinhos com seus sentimentos de criança.



Fotos: Pedro Filho e Maurício de Abreu (Panoramio)


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