quarta-feira, junho 29, 2011

Se fiquei esperando meu amor passar...

Hoje, ou melhor, ontem, decidi-me a baixar a discografia completa do Legião Urbana. Foram horas deveras produtivas que dispendi no 4shared, mas valeu a pena. Joguei tudo numa playlist randômica que começou, coincidentemente pela 11ª faixa de "As Quatro Estações": Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar, uma das minha favoritas, ao lado de Sereníssima, Acrilic On Canvas, Andrea Doria, Perfeição, Dezesseis, dentre inúmeras outras.

Pois bem, que a música é ótima isso é unanimidade, e não vem ao caso.
O fato curioso é que nos tempos de antanho, quando dos meus primeiros contatos com a banda, um amigo da escola gravou, em uma fita K7 (Égua-te!!), o CD "Legião Urbana", o primeiro, de 1985. A fita comportou todas as faixas e, pra não desperdiçar espaço, ele gravou algumas outras faixas.

Cheguei em casa e ouvi toda a fita, adorei todas, entretanto, no fim, tinha uma música que começava com uma introdução muito boa, seguida dos versos:
"Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que então, eu não sabia amar"
E terminava por aí. E eu tinha gostado tanto dessa faixa...

Algum tempo depois, outro amigo, também do 'Cordeiro de Farias', Edinei, do Blog do Argonauta, grande fã de Legião Urbana, me passou a letra toda da música mas eu só a ouvi, de fato, uns 4 ou 5 anos depois.

Mas ela vale a pena... Vale mesmo.

Se fiquei esperando meu amor passar...

segunda-feira, junho 20, 2011

Um Inferno Próprio - Andrés Neuman

Sóror Juana perdeu a virgindade aos 39 anos com seis ou sete frades uma semana antes de largar o hábito. Ao descasar-se do Senhor, ela só queria uma coisa: sexo, sexo, sexo.
Um conto de Andrés Neuman com ilustrações de Zé Otávio


Quando conheci Juana, embora já não fosse sóror, fiquei louco.

Ou não, não estou me explicando direito: ela estava ficando louca e, portanto, eu.

Sóror Juana abandonou o convento quando tinha 39 anos. Na noite em que a conheci, ela me disse que tudo tinha sido culpa da menopausa. O que você está dizendo?, objetei eu com pedantismo, a menopausa começa aos 50! Juana me olhou como esses padres que estão a ponto de te castigar e decidem te absolver. Ficou me olhando com um sorriso superior, convidativo, com esses olhos pretos como seus dois mamilos, e respondeu tranquilamente: “E o que é que você sabe sobre menopausa de freiras?” Quinze minutos depois Juana pagou as bebidas. Vinte e dois minutos depois, milagre, encontramos um táxi livre na metade da Gran Vía. Quarenta e três minutos mais tarde, ela gritava em cima de mim imobilizando os meus punhos.

Deitar com Juana, e não me entendam mal, foi como recuperar a fé. Graças a ela encontrei a luz, o caminho, o gozo divino, mais ou menos pelas mesmas causas pelas quais ela os havia perdido para sempre. Temo que esteja me explicando mal. Lógico: falar de Juana embaraça minha língua. O que estou tentando dizer é que Juana, sempre segundo o seu relato, perdeu a virgindade com um frade loiro uma semana antes de largar o hábito. Para ser preciso, digamos que perdeu a virgindade com seis ou sete frades, nem todos eles loiros, aos 39 anos de idade. Foi, nas suas próprias palavras, experimentar apenas um e já querer todos. Todos, todos, todos. A repetição não é minha, mas da própria Juana. Assim ela contava, com os olhos entrecerrados e as pernas abertas, depois de cada orgasmo. Essa imagem me lembra de imediato o sexo de Juana; estreito, acolhedor, peludo. Tentarei não me desviar demais.

Assim que Juana compreendeu que nunca mais seria digna aos olhos do Senhor (coisa que compreendeu logo), deixou crescer o cabelo, procurou um trabalho de ajudante em uma veterinária e dedicou todo o seu tempo livre (todo, todo, todo) a fornicar com homens de qualquer idade, raça e condição. O único requisito, segundo contava Juana, era que não se apaixonassem por ela. E que prometessem isso desde o primeiro dia. Eu já fui casada, dizia-lhes (dizia-nos), com o maior Ele de todo o universo. Vivi absolutamente comprometida com o meu Senhor dos 18 aos 39 anos. E, como é impossível aspirar entregas mais elevadas, eu agora que sexo, sexo, sexo. Embora saiba que eu vá me condenar por causa disso.

Qualquer um que não tenha se deitado com Juana (e reconheçamos que essa possibilidade começa a ser remota em Madri e arredores) poderia debochar dessa sua frase: “Sei que vou me condenar por causa disso”. E talvez pensasse que se tratava de uma desculpa beata, para não dizer barata. De um mero subterfúgio para redimir seu comportamento pecaminoso. Mas bastava uma só noite com ela, para não dizer um breve coito, para compreender até que ponto a afirmação de Juana era severa e transparente.

A vida sexual de Juana era muito mais do que isso. Que vida, refiro-me. E, se não tivesse sido tão arrasadora e entusiasta, estaria, inclusive, tentado a dizer que se tratava do contrário: de uma morte sexual. Com suas correspondentes, e absolutamente inevitáveis, ressurreições carnais. Posso imaginar os equívocos que esta declaração despertará nas mentes mais perversas. Êxtases espasmódicos. Sucções misteriosas. Grosseiras acrobacias. Inverossímeis durações. Por Deus, por Deus, por Deus. Nada mais distante: com Juana era diferente. Mais simples. Sem técnicas orientais. Sem posições incômodas.

O caso Juana era uma coisa que a nossa civilização quase perdeu: pura lascívia. Com suas tentações irrefreáveis, seus remorsos sinceros e suas reincidências fatais. O incrível era que esses ciclos, que para as pessoas comuns podem levar dias, meses, anos, Juana os resumia vertiginosamente em só uns quinze minutos: os mesmos que durasse o sexo. Tentando uma aproximação científica, digamos que as mulheres experimentam as fases de excitação, planície, orgasmo e resolução. Juana, em compensação, padecia de rubor, alheamento, arrependimento e recaída. Sem cessar. Com a naturalidade de uma tempestade de verão.

Desde a primeira noite que passei com Juana em sua casa, quicando no sofá da salinha de estar, assisti boquiaberto à liturgia que se repetiria sempre. Ela me despia com brutalidade, me mordia com ânsia, me rechaçava brevemente, arrancava sua calcinha e me atraía para dentro dela. Então dava início à parte mais espantosa, a que terminava de capturar meus sentidos e que, de alguma forma, acabou por me condenar: Juana falava. Falava, uivava, rezava, suplicava, chorava, ria, cantava, agradecia. Para fazê-la ingressar naquele transe não era preciso façanhas físicas de nenhum tempo. Bastava deixar-se levar. Aceita-la. A recompensa era, sem exceção, esmagadora. Entre as centenas de obscenidades bíblicas que Juana costumava proferir durante o ato, me fascinavam sobretudo as mais simples: “Você me força a pecar, seu maldito”, “Pelo teu corpo já não tenho perdão”, “Você está me levando para o inferno”. Algum cético poderá objetar que eram meras exclamações de doutrina. Mas a mim, sendo honesto, essas coisas me conquistavam. Sou um homem comum. Não costumo despertar grandes paixões. E nuca, jamais, entenda-me, tinha levado alguém até o inferno.

A minha tragédia era esta: como fornicar depois de Juana? Valia a pena sair das voluptuosas chamas do averno para se recostar na medíocre maciez de um colchão qualquer? Com Juana, cada embate era um acontecimento. Um prazer deplorável. Com as demais mulheres, o sexo era só sexo. Mecânica anatômica. Desejo satisfeito. Desde que conheci Juana todas as minhas amantes ocasionais, e muito especialmente as progressistas, me pareciam mornas, previsíveis, de uma normalidade desesperadora. O que nós fazíamos juntos não era terrível nem atroz nem imperdoável. Nenhum dos dois perdia seus princípios ao fazer o que fazíamos. Com o tempo fui passando da apatia à fobia e cheguei a detestar os gestos vazios que trocava com as minhas amantes. As pequenas contrações. Os gritinhos moderados. Os tímidos gemidos. Já não podia estar com alguém que não fosse ela.

A última noite que vi Juana, estava vestida como de costume: saia ampla e sapatos velhos. Sem maquiagem. Um pouco despenteada. E com a carne eriçada, trêmula, como à espera de um terremoto. Quando arrancou sua calcinha e contemplei de novo seu sexo escuro, não pude evitar beijá-la e sussurrar-lhe ao ouvido: estou apaixonado. Juana fechou as pernas imediatamente, se enrodilhou no sofá, levantou o queixo e disse: então vá embora. Disse isso tão séria que nem sequer tive forças para insistir. Além disso, eu é que tinha descumprido sua promessa. Vesti-me, envergonhado.

Enquanto atravessava a salinha, ouvi que Juana gritava para mim. Eu me virei com a esperança de que tivesse mudado de opinião. Eu a vi se aproximar, nua. Caminhava rápido. Notava-se que tinha os pés gelados. Me olhou fixo nos olhos com uma mistura de rancor e compaixão. Não se pode ir ao inferno por amor, me disse. Depois apagou a luz.

Ainda hoje, depois de tanto tempo, cada vez que penso em Juana meus joelhos se dobram e minha boca fica seca. Minha vida, claro, seguiu em frente. Não está de todo mal. Voltei a me deitar com outras mulheres. Eu não me apaixono, elas não enlouquecem. Nós nos vemos de vez em quando. Fingimos nos encontrar para jantar ou ir ao cinema. Brincamos com cortesia. Nós nos entediamos gratamente.

Às vezes me olhos no espelho, aproximo minha boca e me pergunto o que terá sido feito dos meus infernos. A resposta é simples: nada. Nunca tive um inferno próprio, como Juana. Meu único pecado nesta vida foi perdê-la.


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Um Inferno Próprio é um dos três contos do escritor argentino Andrés Neuman que integram a edição número 7 da Granta em português (ed. Objetiva, 372 págs.) dedicada a jovens escritores em língua espanhola.

Fonte:
NEUMAN, Andrés. Um Inferno Próprio. Revista PLAYBOY. São Paulo, N.433, jun/2011. p. 87-89.

Ilustrações:
Zé Otávio | Ilustrator (Imagens sem alteração nenhuma, não vi necessidade para tal)

quarta-feira, junho 15, 2011

O Rouxinol e a Rosa - Oscar Wilde

– Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas estamos no inverno e não há uma única rosa no jardim...
Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado...

– Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – disse o Estudante, com os olhos cheios de lágrimas.
– Ah! Como a nossa felicidade depende de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.

Eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Tenho cantado o Amor noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo... O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.

– Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Somente se lhe levar uma rosa vermelha... Ah... Como queria tê-la em meus braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim... e ficarei só; ela apenas passará por mim... Passará por mim... e meu coração se despedaçará.

– Eis um verdadeiro apaixonado... – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. O que é dor para ele é alegria para mim. Grande maravilha, na verdade, é o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.

– Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe... – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.

– Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.

– É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.

– Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.

– Chora por causa de uma rosa vermelha, - informou o Rouxinol.

– Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.

Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.

Subitamente, abriu as asas pardas e voou.

Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.

Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!

– Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.

Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.

A roseira sacudiu-se levemente.

– Minhas rosas são amarelas como as cabelos dourados das donzelas, ainda mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez ela possa te possa ajudar.

O Rouxinol então, dirigiu o vôo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu - e eu te cantarei a mais linda de minhas canções.

A roseira sacudiu-se levemente.

– Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.

– Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, - uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?

– Há, respondeu a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.

– Dize. Não tenho medo.

– Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.

– A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa... É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola...O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?

Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.

O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.

– Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia; mais poderoso que o poder.. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.

O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.

Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.

– Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.

Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.

Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.

– Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!

Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.

Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais foi se enterrando em seu peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou...

Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.

Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, - exigiu a Roseira, - senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.

O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.

E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.

Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.

– Mais ainda, Rouxinol, - clamou a Roseira – raiar o dia antes que eu finalize a rosa.

E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.

Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.

E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.

Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.

Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.

Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.

A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.

– Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.

Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.

– Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.

Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.

– Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, - lembrou o Estudante. – Aqui tens a rosa mais linda e vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá o quanto te amo.

A moça franziu a testa.

– Esta rosa não combina com o meu vestido, disse. Ademais, o Capitão da Guarda mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores...

– És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.

– Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante... não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o Capitão da Guarda... – e a moça levantou-se e entrou em casa.

– Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.

Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler...

Fonte:
Cultura Brasileira
Versão em português: Lázaro Curvêlo Chaves - julho de 2005
Imagem: Madicatt

segunda-feira, junho 06, 2011

Da necessidade do pensar - Friedrich Nietzsche

"Ainda vivo, ainda penso: ainda é necessário que eu viva, pois ainda necessito pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum (Sou, portanto penso: penso, portanto sou).

Nos dias atuais, todos se permitem exprimir os seus mais elevados desejos e pensamentos: vou portanto, dizer eu também o que mais desejo e qual foi o primeiro pensamento que veio ao meu coração [...]; vou dizer qual é o pensamento que deve tornar-se a razão, a garantia e a doçura de toda a existência que ainda terei!

Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas."

(NIETZSCHE, 1892).


Achei esse trecho interessante e, por consequência, passível de compartilhamento por ser um pensamento comum a dois grandes expoentes da filosofia: René Descartes e Friedrich Nietzsche. O primeiro eu tenho como base há algum tempo e o segundo tenho aprendido a cada minuto que travo daquelas "conversas" com ele.

Pois bem, ainda creio que, assim como o ato de andar (sobre duas patas) é o exercício físico mais indicado para os seres humanos (justamente por ser uma das características que os distingue dos demais animais), o ato de pensar é o mais indicado para a mente humana pois, como diria Descartes apud Nietzsche, o pensar é uma condição de existência: Cogito, ergo sum.


Fonte:
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Coleção obra-prima de cada autor. Martin Claret: São Paulo, 2003. p.142-43.

quinta-feira, junho 02, 2011

Childhood memories

Eu queria ter uma casa com um muro amarelo...
... pra poder chamá-la de "casa do muro amarelo"