segunda-feira, junho 20, 2011

Um Inferno Próprio - Andrés Neuman

Sóror Juana perdeu a virgindade aos 39 anos com seis ou sete frades uma semana antes de largar o hábito. Ao descasar-se do Senhor, ela só queria uma coisa: sexo, sexo, sexo.
Um conto de Andrés Neuman com ilustrações de Zé Otávio


Quando conheci Juana, embora já não fosse sóror, fiquei louco.

Ou não, não estou me explicando direito: ela estava ficando louca e, portanto, eu.

Sóror Juana abandonou o convento quando tinha 39 anos. Na noite em que a conheci, ela me disse que tudo tinha sido culpa da menopausa. O que você está dizendo?, objetei eu com pedantismo, a menopausa começa aos 50! Juana me olhou como esses padres que estão a ponto de te castigar e decidem te absolver. Ficou me olhando com um sorriso superior, convidativo, com esses olhos pretos como seus dois mamilos, e respondeu tranquilamente: “E o que é que você sabe sobre menopausa de freiras?” Quinze minutos depois Juana pagou as bebidas. Vinte e dois minutos depois, milagre, encontramos um táxi livre na metade da Gran Vía. Quarenta e três minutos mais tarde, ela gritava em cima de mim imobilizando os meus punhos.

Deitar com Juana, e não me entendam mal, foi como recuperar a fé. Graças a ela encontrei a luz, o caminho, o gozo divino, mais ou menos pelas mesmas causas pelas quais ela os havia perdido para sempre. Temo que esteja me explicando mal. Lógico: falar de Juana embaraça minha língua. O que estou tentando dizer é que Juana, sempre segundo o seu relato, perdeu a virgindade com um frade loiro uma semana antes de largar o hábito. Para ser preciso, digamos que perdeu a virgindade com seis ou sete frades, nem todos eles loiros, aos 39 anos de idade. Foi, nas suas próprias palavras, experimentar apenas um e já querer todos. Todos, todos, todos. A repetição não é minha, mas da própria Juana. Assim ela contava, com os olhos entrecerrados e as pernas abertas, depois de cada orgasmo. Essa imagem me lembra de imediato o sexo de Juana; estreito, acolhedor, peludo. Tentarei não me desviar demais.

Assim que Juana compreendeu que nunca mais seria digna aos olhos do Senhor (coisa que compreendeu logo), deixou crescer o cabelo, procurou um trabalho de ajudante em uma veterinária e dedicou todo o seu tempo livre (todo, todo, todo) a fornicar com homens de qualquer idade, raça e condição. O único requisito, segundo contava Juana, era que não se apaixonassem por ela. E que prometessem isso desde o primeiro dia. Eu já fui casada, dizia-lhes (dizia-nos), com o maior Ele de todo o universo. Vivi absolutamente comprometida com o meu Senhor dos 18 aos 39 anos. E, como é impossível aspirar entregas mais elevadas, eu agora que sexo, sexo, sexo. Embora saiba que eu vá me condenar por causa disso.

Qualquer um que não tenha se deitado com Juana (e reconheçamos que essa possibilidade começa a ser remota em Madri e arredores) poderia debochar dessa sua frase: “Sei que vou me condenar por causa disso”. E talvez pensasse que se tratava de uma desculpa beata, para não dizer barata. De um mero subterfúgio para redimir seu comportamento pecaminoso. Mas bastava uma só noite com ela, para não dizer um breve coito, para compreender até que ponto a afirmação de Juana era severa e transparente.

A vida sexual de Juana era muito mais do que isso. Que vida, refiro-me. E, se não tivesse sido tão arrasadora e entusiasta, estaria, inclusive, tentado a dizer que se tratava do contrário: de uma morte sexual. Com suas correspondentes, e absolutamente inevitáveis, ressurreições carnais. Posso imaginar os equívocos que esta declaração despertará nas mentes mais perversas. Êxtases espasmódicos. Sucções misteriosas. Grosseiras acrobacias. Inverossímeis durações. Por Deus, por Deus, por Deus. Nada mais distante: com Juana era diferente. Mais simples. Sem técnicas orientais. Sem posições incômodas.

O caso Juana era uma coisa que a nossa civilização quase perdeu: pura lascívia. Com suas tentações irrefreáveis, seus remorsos sinceros e suas reincidências fatais. O incrível era que esses ciclos, que para as pessoas comuns podem levar dias, meses, anos, Juana os resumia vertiginosamente em só uns quinze minutos: os mesmos que durasse o sexo. Tentando uma aproximação científica, digamos que as mulheres experimentam as fases de excitação, planície, orgasmo e resolução. Juana, em compensação, padecia de rubor, alheamento, arrependimento e recaída. Sem cessar. Com a naturalidade de uma tempestade de verão.

Desde a primeira noite que passei com Juana em sua casa, quicando no sofá da salinha de estar, assisti boquiaberto à liturgia que se repetiria sempre. Ela me despia com brutalidade, me mordia com ânsia, me rechaçava brevemente, arrancava sua calcinha e me atraía para dentro dela. Então dava início à parte mais espantosa, a que terminava de capturar meus sentidos e que, de alguma forma, acabou por me condenar: Juana falava. Falava, uivava, rezava, suplicava, chorava, ria, cantava, agradecia. Para fazê-la ingressar naquele transe não era preciso façanhas físicas de nenhum tempo. Bastava deixar-se levar. Aceita-la. A recompensa era, sem exceção, esmagadora. Entre as centenas de obscenidades bíblicas que Juana costumava proferir durante o ato, me fascinavam sobretudo as mais simples: “Você me força a pecar, seu maldito”, “Pelo teu corpo já não tenho perdão”, “Você está me levando para o inferno”. Algum cético poderá objetar que eram meras exclamações de doutrina. Mas a mim, sendo honesto, essas coisas me conquistavam. Sou um homem comum. Não costumo despertar grandes paixões. E nuca, jamais, entenda-me, tinha levado alguém até o inferno.

A minha tragédia era esta: como fornicar depois de Juana? Valia a pena sair das voluptuosas chamas do averno para se recostar na medíocre maciez de um colchão qualquer? Com Juana, cada embate era um acontecimento. Um prazer deplorável. Com as demais mulheres, o sexo era só sexo. Mecânica anatômica. Desejo satisfeito. Desde que conheci Juana todas as minhas amantes ocasionais, e muito especialmente as progressistas, me pareciam mornas, previsíveis, de uma normalidade desesperadora. O que nós fazíamos juntos não era terrível nem atroz nem imperdoável. Nenhum dos dois perdia seus princípios ao fazer o que fazíamos. Com o tempo fui passando da apatia à fobia e cheguei a detestar os gestos vazios que trocava com as minhas amantes. As pequenas contrações. Os gritinhos moderados. Os tímidos gemidos. Já não podia estar com alguém que não fosse ela.

A última noite que vi Juana, estava vestida como de costume: saia ampla e sapatos velhos. Sem maquiagem. Um pouco despenteada. E com a carne eriçada, trêmula, como à espera de um terremoto. Quando arrancou sua calcinha e contemplei de novo seu sexo escuro, não pude evitar beijá-la e sussurrar-lhe ao ouvido: estou apaixonado. Juana fechou as pernas imediatamente, se enrodilhou no sofá, levantou o queixo e disse: então vá embora. Disse isso tão séria que nem sequer tive forças para insistir. Além disso, eu é que tinha descumprido sua promessa. Vesti-me, envergonhado.

Enquanto atravessava a salinha, ouvi que Juana gritava para mim. Eu me virei com a esperança de que tivesse mudado de opinião. Eu a vi se aproximar, nua. Caminhava rápido. Notava-se que tinha os pés gelados. Me olhou fixo nos olhos com uma mistura de rancor e compaixão. Não se pode ir ao inferno por amor, me disse. Depois apagou a luz.

Ainda hoje, depois de tanto tempo, cada vez que penso em Juana meus joelhos se dobram e minha boca fica seca. Minha vida, claro, seguiu em frente. Não está de todo mal. Voltei a me deitar com outras mulheres. Eu não me apaixono, elas não enlouquecem. Nós nos vemos de vez em quando. Fingimos nos encontrar para jantar ou ir ao cinema. Brincamos com cortesia. Nós nos entediamos gratamente.

Às vezes me olhos no espelho, aproximo minha boca e me pergunto o que terá sido feito dos meus infernos. A resposta é simples: nada. Nunca tive um inferno próprio, como Juana. Meu único pecado nesta vida foi perdê-la.


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Um Inferno Próprio é um dos três contos do escritor argentino Andrés Neuman que integram a edição número 7 da Granta em português (ed. Objetiva, 372 págs.) dedicada a jovens escritores em língua espanhola.

Fonte:
NEUMAN, Andrés. Um Inferno Próprio. Revista PLAYBOY. São Paulo, N.433, jun/2011. p. 87-89.

Ilustrações:
Zé Otávio | Ilustrator (Imagens sem alteração nenhuma, não vi necessidade para tal)

Um comentário:

Amarildo Ferreira disse...

Muito fod* esse conto! Sempre gosto das coisas que publicas n'O Bloggus: são instigantes. Parabéns!