quinta-feira, maio 05, 2011

Da doutrina da finalidade da vida - Friedrich Nietzsche

Nietzsche não é um autor do qual eu seja particularmente partidário, digamos assim, gosto muito de seus escritos e, reconheço, é um autor de inefáveis obras e conceitos, principalmente acerca da existências humana e da relação com as suas divindades. Máximas como "Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!" e "O homem deve ser superado!", exprimem bem o que digo.

Pois bem, relendo A Gaia Ciência, senti-me quase que no dever de compartilhar o trecho a seguir com os poucos leitores do meu inestimável blog.

Nesse breve trecho inicial já se percebe o escopo do fim dos fundamentos da existência de uma divindade, Deus, no caso, como justificativa e fonte de valores para a humanidade, tanto individual quanto coletivamente. Também há a desvaloração de conceitos como bem e mal, certo e errado, e uma breve referência a um tempo em que, talvez, todos alcancem um status de desprendimento que ele chama de "suprema libertação", "suprema irresponsabilidade".

Pois bem, quanto ao trecho, ei-lo...


"Mesmo considerando os homens com bondade ou malevolência, encontro-os sempre, a todos e a cada um em particular, ocupados em uma única tarefa: tornar-se úteis à conservação da espécie. E não por um sentimento de amor a essa espécie, mas simplesmente porque nada neles é mais antigo, mais poderoso, mais inexorável e mais invencível do que esse instinto... porque esse instinto é propriamente a essência da espécie e rebanho que somos. Se chegamos assaz rapidamente, com a miopia ordinária, a separar a cinco passos de distância, os nossos semelhantes em úteis e em prejudiciais, bons e maus, no nosso balanço final refletimos sobre o conjunto e acabamos por desconfiar destas depurações, destas distinções, renunciando a elas. O homem mais prejudicial pode ser ainda, no fim das contas, o mais útil à conservação da espécie, pois sustenta em si mesmo, ou nos outros pela sua influência, instintos sem os quais a humanidade estaria há muito tempo definhada e corrompida. O ódio, o prazer com o mal alheio, a sede de tomar e de dominar e, de uma forma geral, tudo aquilo a que se dá o nome de mau, não passam de um dos elementos da assombrosa economia da conservação da espécie; economia dispendiosa, certamente, pródiga e, no geral, altamente insensata, mas que, de modo comprovado, conservou a nossa raça até agora.

Não sei mais, meu caro próximo, e congênere, se ainda podes viver em detrimento da nossa espécie, viver de forma "irracional" e "má"; aquilo que poderia prejudicar a espécie, talvez tenha morrido há milhares de anos; é talvez agora uma dessas coisas perante as quais nem o próprio Deus pode conceber. Siga as tuas melhores ou piores inclinações e, antes de mais nada, encaminha-te para a tua perdição; em ambos os casos favorecerás, provavelmente, de uma maneira ou de outra, o progresso da humanidade, serás sempre em qualquer ponto o seu benfeitor e terás direito aos seus apologistas... como também aos seus detratores! Mas nunca encontrarás quem possa troçar de ti, indivíduo, inteiramente, mesmo naquilo que tens de melhor, aquele que será capaz de te representar com força suficiente para aproximar da verdade, a tua incomensurável pobreza de rã e de mosca!

Para rirmos de nós mesmos, como seria necessário, como o faria a verdade total, os melhores não tiveram até agora suficiente senso pelo verdadeiro, os mais dotados, gênio bastante. Talvez haja ainda um futuro para o riso! Que acontecerá quando a máxima: "a espécie é tudo, o indivíduo é nada" tiver se incorporado à humanidade e quando todos tiverem livre acesso a esta suprema libertação, a esta suprema irresponsabilidade? Talvez então o riso se tenha aliado à sabedoria, talvez haja aí então uma "gaia ciência".

Fontes:
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Coleção Obra-prima de Cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2003.
Imagem (carticatura) encontrada em diversos sites, mas de autoria desconhecida, não obstante ao fato de estar assinada.
Detalhe do título da capa original da segunda edição de A Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft), de 1887 (Wikipédia)

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