sexta-feira, setembro 10, 2010

Mais Dostoiévski

Logo no início da quarta parte do romance "O Idiota", Fiódor Dostoiévski nos brinda com mais uma de suas inefáveis descrições acerca dos perfis de comportamento humano. Ele descreve a imensidão de pessoas "comuns" existentes em duas classes distintas: os de "inteligência limitada" e os de "alcance mais vasto". Para tal, tipificou os grupos de acordo com duas personagens, George Dandin e Podkolióssin, respectivamente.

O primeiro é um camponês que graças ao seu dinheiro, casa com Angélique de Sotenville, a filha de um fidalgo arruinado e cioso da sua nobreza. Devido à inabilidade de um mensageiro, Dandin vem a saber que a mulher se corresponde com um galanteador chamado Clitandre, e disso faz queixa aos sogros. Angélique, entretanto, não tem dificuldade em fazer com que as aparências fiquem a seu favor. Clitandre exige explicações, e Dandin vê-se obrigado a pedir-lhe desculpas. "Tu o quiseste, George Dandin", dizia a si mesmo George Dandin, que, eterno enganado, passa pelas piores adversidades, pondo em realce, como quis demonstrar Molière, a loucura que comete um homem ao casar com mulher de condição superior à sua.

O segundo, Podkolióssin, é o herói da melhor peça de Gógol (O Casamento, 1842). De caráter bastante enérgico, ele tem, por vezes, assomos de independência. Como, por exemplo, ao saltar pela janela na hora do casamento.

O primeiro grupo é, definitivamente, o mais feliz. Segundo Dostoiévski: "Nada é mais simples para essa gente comum, de inteligência restrita, do que se imaginar original e mesmo exceção, e folgar com essa ilusão, nunca chegando a perceber o equívoco. Basta a muitas de nossas mocinhas cortarem o cabelo de certo modo e usarem óculos azuis e se cognominarem de niilistas, para ficarem de vez persuadidas de que, com isso só, obtiveram automaticamente 'convicções' próprias. [...] Basta a certos indivíduos assimilar uma idéia expressa por outrem, ou ler qualquer página solta, para imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal espontaneamente brotada de seu cérebro." (Dostoiévski, 1868).

Tão feliz quanto é o primeiro grupo, o segundo o é infeliz. "Pois o homem vulgar 'esperto', mesmo se se considera ocasionalmente, ou sempre, homem de gênio ou de originalidade, conserva o verme da dúvida enquistado em seu coração, o que, em muitos casos, arrasta o nosso homem sagaz ao extremo desespero. Mesmo quando se submete, o faz completamente envenenado, visto seu Intimo ser dirigido por sua vaidade. Mas o exemplo que tomamos foi extremo. Para a grande maioria dessa gente hábil as coisas não terminam assim tão tragicamente. O mais que acontece a tais pessoas é ficarem com o fígado afetado na velhice. Mas antes de desistirem e se humilharem, esses homens não raro fazem papéis de malucos; e tudo só pelo desejo de originalidade. E realmente há estranhos exemplos desta asserção; um homem direito, às vezes, por querer ser original, é capaz de cometer uma baixeza. Acontece comumente que um desses desprotegidos da sorte não só é honesto como bom; é o anjo da guarda da família e mantém, por meio do seu trabalho, não apenas os seus, mas também os estranhos. Mesmo assim não consegue descanso em toda a sua vida! O pensamento de que preencheu tão bem a sua vida, em vez de lhe dar conforto e consolo, muito pelo contrário, o irrita. 'Foi apenas nisto que consumi toda a minha vida?', diz ele. 'Foi nisto que me atolei dos pés àcabeça? Foi pois nisto que malbaratei minhas energias, o que me impediu de fazer algo de grande? Se não tivesse perdido tempo nisso eu teria, na certa, descoberto a pólvora ou a América, ou qualquer outra coisa, não sei precisamente qual, mas que teria descoberto, lá isso teria!' O que é mais característico nesses indivíduos é que nunca chegam a saber direito que coisa lhes foi destinada a descobrir e dentro de que são eles uns ases em descobertas. E todavia seus sofrimentos, suas ânsias pelo que deveriam ter descoberto, seriam bastantes para um Colombo ou um Galileu." (Dostoiévski, 1868).

E aí? Com qual grupo você se identifica? Ou melhor: Qual carapuça lhe serviu?

Fonte: DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. O Idiota. Coleção Obra-prima de cada Autor, Série Ouro #34. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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